A MISTERIOSA MORTE DE MIGUELA DE ALCAZAR – 4

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A MISTERIOSA MORTE DE MIGUELA DE ALCAZAR

Lourenço Cazarré e Pedro Almeida Vieira

10. Ganância, inveja, ingratidão e loucura

O português piscou indeciso. Não sabia se eu falava a sério ou se estava de gozação. Quando falam com brasileiros, os lusos partem sempre de uma premissa: este gajo está a engambelar-me. Ele sacudiu a cabeça para recuperar-se do golpe e perguntou:

– Andas armado, ó estupor?

– Não. Ando mal de numerário, mas confesso que ainda não pensei em assaltar.

– Num país com tantos criminosos, como o Brasil, devemos andar sempre com uma arma à mão. Andam bandidos à solta pelas ruas aos milhares, matando e assaltando. E, no final, fica tudo na mesma. A policia não os prende. Inconcebível!

– Não seja tão trágico – ponderei. – Olhe a questão pelo meu ângulo. Preciso desses assaltos e assassinatos. Escrevo sobre eles. Em troca, o patrão me dá um dinheirinho com o qual sobrevivo até o final do mês. A isso, a essa rotina, eu chamo vida, minha vida.

Sou assim mesmo, bastante sardônico. Minhas frases sempre escondem um tantinho de horror por trás das brincadeiras.

O gerente do Imperial moveu-se inquieto na cadeira:

– A tua rotina, patife, é apenas um fragmento insignificante da grande tragédia humana. Fazes parte de um espetáculo maior, embora sejas mau ator. Já ouviste falar em Shakespeare?

– Qual era a área do sujeito? História em quadrinhos?

Rei Lear é a peça dele que mais aprecio. Ela escalpeliza os traços mais marcantes dos homens: a ambição, a inveja, a ingratidão e a loucura.

Manoel Joaquim Batota levantou-se bruscamente da cadeira. Mas isso não o ajudou: ele continuou baixinho. Lenta e teatralmente, enfiou a mão no bolso interno do paletó e dele retirou um canivete.

Não era um canivete comum, desses que as pessoas usam para tirar sujeira das unhas ou para desmanchar tabletes de maconha prensada. O imenso canivete era daqueles que têm, além da lâmina, saca-rolhas, abridor de garrafa, termômetro, bússola, tesoura, relógio, calculadora e radinho de pilha.

A lâmina que saltou do miolo do canivete remeteu-me à minha infância. Lembrei-me do gigantesco facão que era usado pelo nosso açougueiro lá em Canguçu.

Vagarosamente, o gerente do hotel caminhou na minha direção, recitando um poema de João Cabral de Melo Neto:

O que em todas as facas

é a melhor qualidade:

a agudeza feroz,

certa eletricidade,

mais a violência limpa

que elas têm, tão exatas,

o gosto do deserto,

o estilo das facas.

E, ameaçador, parou a dois passos de mim:

– Vais confessar, antes de morrer, o verdadeiro motivo que te trouxe até aqui? Vieste para me matar ou para jogar uma bomba no meu hotel? Percebi logo que, apesar de seres parvo, és um verdadeiro criminoso.

11. Mentira para assustar babacas do terceiro mundo

Naquele baita canivete estava a confirmação da demência que eu vislumbrara nos olhos de Manoel Joaquim Batota. Das paixões humanas, citadas há pouco, a mais pronunciada no cidadão lusitano era a loucura.

Com o enorme canivete apontado para o meu pescoço – que, como todo humano pescoço, não tem osso -, ele continuou:

– Que te parece preferível, pancrácio, o impacto seco de uma bala nos duros ossos do teu crânio ou o suave deslizar de uma lâmina afiada na tua rubra e cálida garganta?

A extensa frase era mesmo assustadora, mas, convenhamos, o estilo poético não era dos piores. Como sou especializado em manusear pensamentos tolos em horas impróprias, pensei o seguinte: com um fraseado tão elegante, este portuga, se quisesse, entrava na hora para a Academia Brasileira de Letras.

O gigantesco canivete permanecia a perigosos cinco centímetros da minha carótida como que para me desaconselhar o emprego de chufas, motejos, chistes e assemelhados.

Com gestos ainda mais demorados, mas sempre sem tirar os olhos de mim, o português virou-se ligeiramente de lado e, com a mão esquerda, abriu uma gaveta. Dela retirou um revólver. Na verdade, um mísero calibre 22. Talvez aquela arma não fosse capaz de acabar com a minha raça, mas certamente me causaria algum dano.

– Escolhe, cão dos infernos! – berrou ele. – Bala ou faca?

Finalmente, compreendi a pergunta dele em toda sua altura, largura e profundidade. Aparentemente, ele não estava brincando. Queria mesmo saber se eu preferia morrer degolado ou fuzilado. Não era um dilema filosófico que me atraísse muito. Prefiro sempre discutir questões de menor transcendência. Como, por exemplo: por que o condicionador acaba sempre antes do xampu?

Naquele momento, pela primeira vez na vida, achei que realmente corria o risco de ser mandado para o beleléu.

Aí, me perguntei: que vim eu, descendente da brava estirpe dos centauros dos pampas, fazer nesta terra de árvores enfezadas e retorcidas? Vim para morrer nas mãos de um lusitano lunático, um lusitanático? Se vim para isso, por que gastei tanto com a passagem de avião? Por que não peguei um ônibus?

É assim mesmo. Quando se defronta com a morte, a gente faz um monte de perguntas. Por que não passei uma cantada na minha prima, aquela gostosa? Por que não fui morar em Florianópolis, que é a cidade preferida dos maconheiros gaúchos? Lá, pelo menos, tem praia.

Suspirei fundo.

Com um insano sorriso pendurado nos lábios, Manoel Joaquim Batota aguardava minha resposta. Faca ou bala? Nas provas da faculdade, eu não gostava de questões desse tipo. Preferia as de múltipla escolha.

Pigarreei para ver se tirava da garganta o medo pegajoso que tomara conta dela:

– Se pudesse escolher um tipo de morte, eu optaria pelo atropelamento, seu Manoel. Gostaria de ser esmigalhado por um caminhão carregado com pedras. Seria uma morte indolor.

– Indolor e sem graça, estúpido! Não passas de um simplório. Não te seduz o crime intrincado, ardiloso e requintado, o crime que faz jus às nossas origens latinas? A casca de banana na sala da velha perneta. O etanol na botija do cachaceiro. O cidadão claustrofóbico preso no elevador de um prédio comercial durante o fim de semana. O excesso de medicação ministrado pelo enfermeiro negligente. A sabotagem nos travões do carro.

Entusiasmado como político diante de câmera de televisão, o luso prosseguiu:

– Pensa nos homicídios que nem chegam à polícia e nem aparecem nos jornais. Todo dia, no mundo todo, milhares de crimes perfeitos são praticados por pessoas comuns. Na verdade, não há nada mais excitante do que cometer um crime e nada se pagar depois…

– Aqui no Brasil não é bem assim – contestei. – Os ricos sempre livram o pescoço. Só a chinelada vai em cana.

– Não se trata de dinheiro, lorpa! – atalhou-me. – Estou a falar-te de inteligência assassina. Conheço mulheres simples, lavadeiras ou faxineiras, que moem vidro para colocar no feijão-com-arroz dos maridos infiéis. Outras ateiam fogo aos barracos nos quais eles cozinham as bebedeiras. Tivemos uma camareira aqui no hotel que matou o marido com veneno de rato na farofa. Como ela aMedalhava muito o feijão, o desgraçado nem percebeu… Por acaso, já notaste que no Brasil o número de viúvas é mais expressivo entre as mulheres mais pobres?

– Não! – respondi, verdadeiramente surpreso.

– Pensa um pouco, palerma, naqueles crimes maravilhosos relatados pelos engenhosos escritores de livros policiais. Os assassinatos em série. O crime do quarto fechado. O morto assassino. As crianças diabólicas. Os objetos com vida própria.

– O senhor tem razão – disse eu, bajulador. – Realmente, a morte pode ser uma coisa de extremo bom gosto e sofisticação.

– Então, como podes tu, meu grande bobo, preferir a sensaboria de um camião carregado de pedras?

– Por causa da minha origem, doutor Batota. Nós, gaúchos, amamos a simplicidade até mesmo na hora da morte. Uma facada no bucho, um tiro na testa, uma paulada no cocuruto, uma capação sem anestesia. E pronto.

12. Argumentação a favor do serial killer

– Sim, Campestre, sei que os gaúchos são uns primitivos! Todo o mundo sabe! Porém, eu, nascido na pátria de Fernando Pessoa, sou um homem refinado. Por exemplo, para me deliciar com tua agonia, eu poderia agarrar-te pelo pescoço com a mão esquerda ao mesmo tempo em que com a direita enfiava teus dedos na tomada

– Sim, mas, nesse caso concreto, o senhor tomaria o choque junto comigo.

Às vezes, principalmente nos momentos menos indicados, sinto a tentação de ser didático. Quando permanece dentro de mim, sem ser compartilhado, o conhecimento me sufoca. Na verdade, amo a humanidade, gosto de dividir com ela minha inteligência. Ali, por exemplo, eu falava com conhecimento de causa. Formei-me rádio-técnico pela Escola Técnica de Pelotas e possuo razoável noção de eletricidade. Levei uns dez choques terríveis.

– Pois, palerma. Então amarrava-te os braços e as pernas e depois cortava-te os pulsos. E ficarias a esvair-te em sangue. Quantas horas seriam necessárias para ficares sem pingo de sangue?

Decidi dar trela ao gerente do Imperial Hotel da República porque, como se sabe, todo maluco gosta de papo. Decidi espichar a conversa com ele até que aparecesse alguém para me socorrer.

– O senhor Batota tem toda a razão. O estilo é tudo em um criminoso. Mas eu, pela minha humilde extração, sou um bronco. Morte por morte, prefiro a bomba atômica. Uma só explosão leva milhares de pessoas desta pra uma melhor.

– Deixa-te de parvoíces, meu estulto! Só ingênuos acreditam na existência da bomba atômica. Isso é mais uma das mentiras dos russos e americanos para assustar os babacas, como vocês dizem, do Terceiro Mundo.

Olhei espantado para Manoel Joaquim Batota. Aquela idéia era interessante. Sem dúvida, ele era um biruta acima da média.

– O que o senhor Manoel acha dos serial killers? – indaguei.

– São uns reputados imbecis que acabam apanhados e sempre mortos. A parte mais doce de um crime é justamente o momento posterior, ou seja, é o usufruto da impunidade.

– Gosto dos serial killers porque sabem transplantar a eficiência americana para os morticínios em massa. Ninguém mata mais gente em menos tempo, gastando menos projéteis, que um americano,

Sem perceber a agudeza da minha argumentação, Batota virou o pulso que empunhava o revólver e consultou o relógio. Aproveitei para olhar o meu também. Estava curioso para conhecer a hora exata da minha morte. Faltavam dez minutos para as três da tarde.

Um calafrio percorreu-me a coluna cervical. Teria aquele bigodudo assassino predileção pelas horas redondas para praticar seus crimes?

– Vamos lá embora. O nosso Congresso está para começar – disse o português e guardou o revólver na gaveta. – Passaste no meu teste de coragem. Sendo tu mais um tolo, nem és dos mais cagões.

Em seguida, num gesto rápido e elegante, ele recolocou o canivete gigante no bolso interno do paletó.

Uma onda de raiva subiu-me à cabeça. Maldito portuga! Tudo não passara de brincadeirinha. Pensei em baixar o braço nele. Mas desisti logo porque ele era – como dizem os gaúchos – mais reforçado que sapato de padre e mais pescoçudo que touro de exposição.

Durante o tempo todo da brincadeira eu permanecera firme, mas, no desfecho, veio-me uma formidável frouxidão nas pernas. Manaram suores por todo o meu corpo e eu senti a urgente necessidade de recolher-me a um local privado.

– Cadê o banheiro? – perguntei.

– Ali!

Batota apontou para uma porta onde se lia: “Perigo. Depósito de Produtos Químicos”.

Minutos depois, aliviado, em companhia do gerente do hotel, deixei aquele maldito escritório.

– Quer dizer que vai haver mesmo esse tal Congresso? – perguntei, no corredor. – Pensei que não passava de um trote em cima do pobre Medalhão.

– A pensar morreu um burro da tua idade. Fui eu quem deu a informação ao Medalha, a esse grande camoniano, excelente cidadão e cristão convicto. Nunca o enganaria.

– Sem dúvida, ele é um homem muito sensato e comedido.

Chegamos ao saguão de entrada.

Vários dos sujeitos engravatados tinham resvalado para o sono sonoroso.

– Estes pobres diabos aparecem de todos os cantos do país para tratar aqui em Brasília de problemas de seus municípios – disse Batota. – Mas nem sempre conseguem audiências nos Ministérios, e vão ficando. Vês aquele ali, com cara de índio? Vai fazer um ano que aqui está. É o Zé Tapajós, Veio de Macapaiutubanarema, ou coisa parecida, no Amazonas. Ouviram falar por lá que foi inventada a penicilina, O Tapajós quer umas doses, mas parece que o encarregado dos remédios no Ministério da Saúde foi para Inglaterra fazer um doutoramento.