A MISTERIOSA MORTE DE MIGUELA DE ALCAZAR – 14

211

A MISTERIOSA MORTE DE MIGUELA DE ALCAZAR

Lourenço Cazarré e Pedro Almeida Vieira*

48. Palavras vivem trocando de sentido

A dureza da pergunta espantou a todos nós.

– Não gosto das suas frases, delegado! – o poeta bateu com a ponta da bengala no chão. – O senhor vai diretamente ao ponto. A verdadeira linguagem, no entanto, é labiríntica, sinuosa. Devemos andar por ela em círculos, tateando. Feito o alerta, eu lhe respondo: não matei Miguela de Alcazar, mas não afirmo isso de forma categórica.

– Como assim? – espantou-se o policial. – Explique-se melhor!

Bugres prosseguiu:

– Reconheço, no entanto, que posso ter contribuído para a morte dela, sim. Porém, se isso ocorreu, foi sem que eu o desejasse.

– Não sou bom em gramática – disse o delegado, fazendo cara de nojo. – Aliás, das incontáveis regras que regem nossa bela língua portuguesa, só guardei uma: não se coloca vírgula entre sujeito e verbo. Portanto, não entendi exatamente aonde o senhor quer chegar com esse palavrório.

 – Realmente, para meter bandidos na cadeia, o senhor delegado não necessita de sintaxe sofisticada – comentou o argentino. – Mas, voltando ao principal, falarei agora da minha hipotética participação na morte de Miguela de Alcazar. Se contribui para o falecimento dela, foi com uma inocente brincadeirinha…

– Brincadeirinha?

– Exato, delegado. Miguela costumava ler logo após o almoço. Sabedor disso, coloquei um bilhetinho zombeteiro dentro do livro que ela estava lendo. Pode ser que ela tenha visto o tal bilhete…

– Conte melhor essa história! – exigiu o policial.

– Bem, tudo começou na portaria deste hotel. Quando nos registrávamos, escutei o porteiro dizer a Miguela que ela ficaria hospedada no apartamento número 1313. No mesmo instante, lembrei-me de que a Bíblia que Miguela costumava ler tinha exatamente 1313 páginas. Possuo um exemplar da mesma edição, que saiu do prelo do impressor Juan Cabeza de Toro, em Barcelona, em 1796. Foi com grande gosto que li essa edição, quando ainda não era cego, evidentemente, num internato suíço…

– Volte para a história central – exigiu o delegado.

– Ali mesmo, na portaria, discretamente, rabisquei um bilhetinho. Escrevi-o com a mão esquerda para disfarçar minha letra. Depois, pedi a Miguela que me deixasse tocar sua Bíblia. Aleguei que queria cheirar a encadernação em couro. Coloquei então o bilhete na última página. E pensei assim: se por acaso o encontrar, Miguela terá um belo susto.

– O que dizia o bilhetinho?

– Não lembro, delegado. Usei várias palavras, mas não me recordo em que ordem eu as escrevi. Dizem que as palavras costumam trocar de lugar na frase depois de escritas. Assim, com o passar do tempo, os textos assumem novos sentidos. Por vezes divergentes dos originários. Num conto famoso levantei a hipótese de que, fechado um livro, as palavras se movem de uma página a outra, a fim de confraternizar…

– Não li esse conto – cortou o policial, seco. – E, se o tivesse lido, decerto não teria gostado. Não me venha com lengalengas! Não tente tirar o corpo fora! O senhor sabe exatamente o que escreveu no bilhete. Portanto, fale a verdade!

49. Os melhores pesadelos são os pós-prandiais

Batota apontou na minha direção:

– Senhor delegado, aqui este jovem jornalista tem o tal bilhete que, aliás, foi escrito em português.

Levei um susto. Nem lembrava mais do tal bilhete. Estupidificado, tateei os bolsos à procura dele.

– Leia! – ordenou o delegado.

Limpei a garganta e li com voz incerta:

Durante o Congresso, eu te desmascararei, Miguela: apontarei os trechos dos vários livros que plagiaste ao escrever O touro maltês.

– Tem assinatura? – perguntou o policial.

– Só uma letra, maiúscula, um S – respondi.

Aroeira dirigiu-se a Bugres:

– Por que o senhor escreveu em português? Por que não escreveu na sua língua materna?

– Ora, porque, se escrevesse em espanhol, não resistiria à tentação de construir frases elegantes, que acabariam me denunciando. Utilizando-me de uma língua primitiva, no caso, o português, fui obrigado a ser quase grosseiro.

Indignado com a ofensa à última flor do Lácio, Batota levantou-se bruscamente:

– Língua primitiva é essa coisa a galope que vocês falam. Na Argentina, todos falam como se fossem locutores de corridas de cavalo. Como ousa tamanha ignomínia!

Fulo da vida, o português apanhou no prato um resto de bife, que jogou contra o escritor portenho. Atingido pelo sangrento projétil no rosto, Bugres, lenta e gravemente, limpou-se com um lenço imaculado. E, depois de passar a ponta da língua pelo lenço, disse:

– Era carne uruguaia, entrecot de segunda. E o animal, provavelmente, estava com febre aftosa. Da próxima vez que tentar me matar, use um legítimo bife de chorizo argentino.

Alguns escritores ensaiaram uns risinhos, mas Aroeira os calou com um olhar gélido. E, depois, indagou do autor de História universal da infância:

– Onde o senhor aprendeu tão bem o português?

– Minha querida mamãe leu para mim, mais de dez vezes, Os Sertões, de Euclides da Cunha.

– Voltemos ao nosso crime. Não lhe passou pela cabeça que dona Miguela poderia levar um susto fatal ao ler o bilhetinho?

– Não, de modo algum.

– Mentira! – explodiu Batota, e deu um tapa de mão aberta na mesa. – O porteiro do meu hotel ouviu quando o senhor sugeriu a dona Miguela que lesse o final do Apocalipse após o almoço.

– Porteiros de hotéis são sempre abelhudos! Admito, sim, que sugeri a Miguela a leitura do Apocalipse, após o almoço. Mas só o fiz porque julgo que o livro sagrado é aquele que proporciona os melhores pesadelos pós-prandiais. Aliás, por falar nisso, é importante registrar aqui que os sonhos ruins das tardes são mais apavorantes que os noturnos. Portanto, são sonhos mais proveitosos, literariamente falando. Ou seja, eu só queria ajudar Miguela.

– Mas por que o senhor assinou com a letra S? – indagou Aroeira, e levantou-se.

– Porque é a nona letra do meu nome. E o nove, na mitologia pérsica, corresponde ao semideus do pesadelo, Hilomeus Katrei, o Nove Dedos, meio homem, meio tigre.

A resposta não satisfez o delegado que, movendo a cabeça de um lado a outro, negativamente, deu uma volta inteira ao redor da mesa antes de falar:

– O seu bilhete é cruel. Criminoso, eu diria. Ele seguramente desencadeou o enfarto que matou a nossa escritora.

Um silêncio constrangedor desceu sobre a mesa. Por mais de um minuto chafurdamos nele até que Bugres resolveu reagir:

– Não gostei do emprego da palavra seguramente, delegado. Não temos o direito de ser peremptórios. Nem mesmo quando aquilo de que estamos falando se passou diante do nosso nariz. Entre um fato e sua enunciação, mesmo que simultânea, há um abismo colossal. Assim, se for facultado ao senhor o emprego da palavra seguramente, eu terei direito a retrucar usando a expressão de modo algum. E com isso, ambos, teremos razão, em um ou em outro momento.

50. Prova não tem importância no Brasil

Satisfeito consigo mesmo, encantado por estar embromando o policial, o poeta portenho não conseguiu esconder o sorriso maroto que lhe veio ao rosto.

Depois, ao fim de um demorado pigarro retórico, continuou:

– Sua tese do bilhete fatídico é interessante, delegado, porém falsa. Admitamos que Miguela leu o bilhete e que, em função dessa leitura, tenha sofrido um enfarte. Mas, aí, eu lhe pergunto: como poderá o senhor provar cientificamente que há uma ligação direta entre dois fatos de natureza distinta: a leitura, que é algo espiritual e elevado, e a morte, que é um fato físico, rasteiro e sem transcendência.

O delegado, que mantivera a cabeça abaixada enquanto o poeta falava, ergueu bruscamente o rosto e contra-atacou:

– O senhor tenta erguer aqui uma barricada verbal para fugir à Justiça brasileira, mas não conseguirá se safar. Isso eu lhe garanto. O Brasil é um país de amantes da palavra falada. Praticamos com gosto uma algaravia mestiça mais vigorosa e doce que o idioma original. Mas, essencialmente analfabetos, odiamos a palavra escrita porque ela permite e propicia enrolações, como a que o senhor está encenando aqui.

– Que tenho eu a ver com essa inclinação brasileira pelo analfabetismo?

– Tudo! – grunhiu o delegado. – Indiciado por mim, o senhor será levado a júri. No Tribunal, prestarei um depoimento emocionado contra o senhor. Os jurados acreditarão em mim porque sou brasileiro. O senhor, estrangeiro, será considerado o culpado.

– Mas e as provas? – indagou Bugres, assustado. – Onde ficam as provas nesse hipotético julgamento?

– No sistema judicial brasileiro provas não têm muita importância. Ao começar meu pronunciamento, direi que o senhor é argentino. Imediatamente os jurados farão uma ligação com o futebol e…

– Mas eu odeio futebol! – gemeu Bugres. – Escrevi isso repetidas vezes.

A preocupação do poeta era visível nas suas sobrancelhas, ainda mais espetadas naquele momento. Senti pena dele. Nós, gaúchos, somos treinados, desde o berço, a odiar os argentinos. Diz o ditado: com sino, menino e argentino, só na pancada! Porém, comovido, resolvi intervir em favor dele:

– Doutor Aroeira, acho que o senhor Bugres estava brincando quando escreveu que dona Miguela era uma plagiaria contumaz.

51. Autores emprestam seus defeitos aos personagens

Detectando a solidariedade e a cumplicidade das minhas palavras, o poeta voltou a falar:

– Na verdade, nenhum livro está isento de plágio, no todo ou em parte. Gênios ou escritores de quinta categoria, nós só rabiscamos pastiches do livro infinito que foi, está e estará sempre sendo escrito pelos deuses. Quem se utiliza da palavra escrita, recorre a um único e inesgotável manancial de símbolos, que é do uso também das divindades. Em contrapartida, os deuses nos exigem moderação…

– Saia do labirinto! – berrou Aroeira. – Esqueça os deuses e volte ao plágio.

Nervosas e assustadas, as mãos do argentino tamborilaram dramáticos trechos de tangos no tampo da mesa. E, só depois desse espetáculo digital, ele voltou a falar:

– Sim, o plágio! Descendo à linguagem mais rasteira, delegado, eu diria que a ambigüidade sexual do detetive Juanito Saavedra, de O touro maltês, parece ter sido copiada da discreta afetação feminil de Herculano Poire, o detetive criado por Águeda Christine.

Depois de um suspirado oh! de espanto, todos os olhares se voltaram para a escritora inglesa, que piscou os olhos, piscou, piscou, mas nada falou.

Continuou o poeta:

– De outro lado, Juanito Cervantes também lembra Jales Maigrot, o comissário inventado por Georges Sim Et Non. São semelhantes na estupidez. Indago: teria Miguela de Alcazar calcado seu herói no de Sim et Non? É possível, mas sabe-se também que, quase sempre, autores buscam na própria mente os defeitos que emprestarão aos seus personagens…

– Seria por isso, meu irmão, que Dom Isidoro Paródia é tão pedante? – perguntou Sim Et Non. – Seria esse teu detetive, inverossímil e livresco, um resumo de toda a obra escrita por tu?

As bochechas chupadas do autor francês estavam vermelhas e tremiam, raivosas.

Já o escritor argentino tentava aparentar calma, mas a agitação histérica de suas sobrancelhas o desmentia. Como se sabe, ele tinha muito orgulho de ter criado Dom Isidoro Paródia

Fechando as mãos e alçando os ombros, como alguém que vai entrar em um combate corporal, Bugres voltou a cuspir veneno:

– Eu diria ainda que os trechos mais ridículos de O touro maltês lembram as passagens mais banais de Contravenção e penalidade…

– Banal é a senhora sua mãe, aquela quenga da peste! – berrou Fedorova e fez menção de levantar-se. Mas não conseguiu. A provisão de cachaça que armazenara no bucho a puxou para baixo e a fez sentar-se novamente. Furibunda, acrescentou: – Espero que você arda para sempre no círculo dos baitolas no inferno, castelhano filho do cão!

Sem se abalar com a gritaria da russa, o poeta de Buenos Aires despejou outra dose de peçonha:

– Se pudesse falar, sem ser interrompido por grunhidos, eu afirmaria ainda que os mais tediosos trechos de O touro maltês guardam forte semelhança com as mais áridas passagens de Guerra na Praça da Paz Celestial.

Voltamo-nos todos para o escritor chinês, que abrindo um pouco mais o permanente sorriso e fechando, em idêntica proporção, os olhos, declarou:

– O tédio é estado em que um espírito cultivado permanece a maior parte do tempo. O que há de mais grandioso na terra? O deserto. O deserto é a metáfora perfeita para a aridez de nossas vidas. O deserto é o nada e o nada é o vazio. De que está cheio o vazio, meu? De tédio. Leitor culto é o que sabe apreciar os trechos mais áridos de um livro.

As sobrancelhas de Bugres sossegaram por um instante, reconhecendo que o chinês também era bom em frases sinuosas.

*Jornalista e Escritor.