A MISTERIOSA MORTE DE MIGUELA DE ALCAZAR – 11

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A MISTERIOSA MORTE DE MIGUELA DE ALCAZAR

Lourenço Cazarré e Pedro Almeida Vieira*

36. Os assassinos de hoje preferem tiros e facadas

Ao chegarmos ao apartamento da falecida Miguela de Alcazar, os dois escritores estavam quase saindo na pancada, apesar dos risinhos falsamente cordiais que trocavam.

Lado a lado, a inglesa e o francês entraram ambos com o pé direito no apartamento 1313. Batota e eu nos detivemos no umbral a observá-los.

A escritora dirigiu-se diretamente para a falecida. Parou a um passo dela, abaixou-se e se pôs a observar-lhe atentamente o rosto.

Já o escritor se colocou exatamente no centro do quarto, abriu um pouco as pernas e cruzou os braços. Quase imperceptivelmente, movia o pescoço. Com os olhos semicerrados percorria o apartamento. De quando em quando, lançava uma nuvem de fumaça de tabaco.

– Atenção, Campestre – murmurou Batota junto ao meu ouvido. – Desde o primeiro momento eles mostram-se muito diferentes. Lady Águeda parece-me pessoa pragmática, que quer logo descobrir alguma coisa por observação direta. Já mestre Sim Et Non surge-me mais espiritual, quer deixar-se impregnar pelo ambiente. Em suma, ele trabalha mais com a intuição; ela, com a razão.

Surpreso, voltei-me para o português, mas não pude retrucar porque a escritora britânica começara a falar:

– Os peritos brasileiros deveriam ter examinado melhor essa Bíblia. Há manchas no alto das páginas. Acho que essas páginas foram mergulhadas em alguma substância líquida. Veneno, melhor dizendo.

Batota e eu trocamos um olhar estupefato.

Após um minuto de silêncio respeitoso, Sim Et Non soltou um risinho debochado:

– Tu taix brincando! Miguela teria que ler umas vinte mil páginas pra se envenenar desse modo!

– Uai, é óbvio que não! – a voz da escritora inglesa tremeu ligeiramente. Era visível o esforço que ela fazia para controlar a raiva. – Depende do grau de toxicidade desse trem de veneno.

– Vocês, ingleses, são antiquados pra cacete! – retrucou o francês. – Por que não abandonam essa mania de envenenar as vítimas? Os assassinos de hoje preferem tiros e facadas…

E a seguir, como se tivesse tido uma súbita idéia, ele voltou-se para Batota:
– Oh, vascaíno, por falar em veneno, me diz uma coisa: o que a Miguela comeu no almoço de hoje?

– Feijão com arroz, bife e batatas fritas.

– Uai, como é qu´ocê sabe disso, assim na pontinha da língua? – perguntou Águeda Christine, desconfiada.

– Oh, carago! – reagiu bruscamente o português. – Sei disso porque fui eu que preparei o prato. Ela telefonou-me ao meio-dia a dizer o que queria comer. E mencionou as quantidades exatas. Foi uma honra para mim confeccionar e servir-lhe o almoço. E depois fui eu próprio que trouxe o prato para aqui.

37. Edgar Allan Poe não teve culpa de nascer naquele país estúrdio

A irada reação do gerente do hotel não pegou bem. Os dois escritores trocaram um longo olhar cheio de significados.
– Veja como são as coisas, Águeda – disse o francês. – O portuga pode muito bem ter envenenado a comida da velha. Ou na própria cozinha ou, mais discretamente, no caminho até este apartamento…
– Deus me livre e guarde! – persignou-se Batota.
– Não te preocupa, malandro – apressou-se o escritor a acalmá-lo. – Só vou te responsabilizar depois que a autópsia confirmar a morte por envenenamento culinário.
– Deixe de ser bobo, sô! – reagiu a escritora. – Mantenho a tese do envenenamento do livro. É a hipótese mais elaborada. E nós, ingleses, sempre raciocinamos de maneira mais sofisticada. É por isso que os países anglo-saxônicos são os mais ricos do mundo. O pensamento requintado nos distanciou da gentalha, seja ela nórdica, eslava, germânica ou latina. Rejeito a idéia de veneno no feijão. Ainda se fosse faisão!
– A tua tese não se sustenta – retrucou o francês. – O assassino, além de saber se a bruxa espanhola lambia os dedos, precisaria saber se ela virava as folhas pegando-as pelo alto ou por baixo. Restaria ainda o problema da potência do veneno, que teria que ser altamente concentrado…
A inglesa sacudiu os ombros magros, bateu o pé no chão e insistiu:
– Com ou sem veneno, estou certa de que aqui ocorreu um crime do tipo “quarto fechado”.
– Discordo! – o francês foi enfático. – Aqui houve um crime comum. Digamos, em tese, que o assassino tenha sido o português. Depois de entregar a comida envenenada, o que fez ele? Fechou o quarto com a chave-mestra só para que os idiotas fossem levados a pensar em crime de quarto fechado.
– Valha-me Santo Antônio! – Batota persignou-se. – Sou inocente! Não me acusem, nem mesmo em tese! Tirem-me dessa!
– Não atrapalhe o nosso debate intelectual! – ralhou Águeda Christine com Batota e, depois, dirigiu-se novamente a Sim Et Non: – Aposto o qu’ocê quiser que aqui houve um crime de quarto fechado.
Em meio a uma nuvem mais robusta de fumaça, o francês ironizou:
– Esse negócio de quarto fechado é apenas uma tola brincadeira inventada por um americano macabro.
– Não fale mal de Edgar Alan Poe! – reagiu a mulher. – O tadinho não teve culpa de ter nascido naquele país estúrdio. Era um gênio!
Neste ponto do livro, devo dar uma breve explicação. Os historiadores da literatura policial parecem concordar que o conto “Os Crimes da Rua Morgue”, de Edgar Alan Poe, foi o primeiro exemplo de assassinato em “quarto fechado”. Ou seja, quando um crime é cometido num lugar inacessível a um ser humano.
Ao contrário de Dax e Fedorova, que tinham se movimentado por todo o quarto, Águeda Christine e Sim Et Non mantiveram-se o tempo todo nos mesmos lugares, imóveis.
Como já disse, a autora de Assassinato no expresso Liverpool-Manchester concentrou sua atenção no cadáver. Imóvel diante da falecida, examinou com muita atenção a roupa que ela vestia. A seguir, passou ao rosto, do qual verificou ruga por ruga. Herculano Poire, o detetive criado por Águeda Christine, como sabemos todos, também era um grande observador.
Já o autor de Sangue na névoa permaneceu imóvel no centro da peça, fumando enquanto dissimuladamente olhava ao redor. Exatamente como faria o detetive Jales Maigrot, cujo método consistia em mergulhar profundamente na atmosfera do local onde havia sido cometido o crime. Assim, integrando-se ao cenário fatídico, Maigrot acabava por identificar-se espiritualmente com o criminoso. No fim, encurralado por forte pressão psicológica, o assassino acabava confessando o crime que cometera.

38. Da afetação dos atores ingleses com seus bigodinhos ridículos

– Jogo meu pescoço que a velha baranga foi assassinada! – apostou o francês em voz alta. – Ô portuga, manda fechar todas as portas e janelas do hotel. Que ninguém deixe o prédio!
Surpresos, Águeda Christine, Batota e eu encaramos o francês, que acrescentou:
– Se o assassino ainda estiver entre nós, ele não escapará. Eu o descobrirei. Olhos nos olhos! É assim que consigo penetrar nos mais escuros desvãos da alma humana.
– Larga de bobagem, filhinho – disse a escritora inglesa. – Alma não tem vão nem desvão. Eu também já sei que Miguela foi assassinada e que o assassino ainda não deixou o hotel. Logo mostrarei as provas. Anglo-saxões têm o péssimo costume de respaldar com provas aquilo que afirmam.
– O senhor Sim et Non ainda continua desconfiado de mim? – perguntou um trêmulo Batota.
– Todos aqui são suspeitos – respondeu o francês. – Mas você, vascaíno, joga no segundo time, junto com os demais serviçais do hotel. No primeiro time, estamos nós, os escritores.
– Verdade verdadeira, sô – concordou Águeda Christine. – Somos os principais suspeitos. Mas uns tinham motivos mais fortes para matar a pobre mulher. Ocê, por exemplo. Além de vender mais livros qu’ocê, Miguela era adorada pelos críticos literários franceses, que desprezam ocê. Ora, inveja e despeito literários são fortes motivos para um francês matar alguém.
– Não seja modesta, Aguedinha! Você odiava ela bem mais que eu porque Miguela teve sucesso também nas versões cinematográficas dos seus livros. E tu nunca teve sorte com as filmagens dos teus textos, por causa daqueles afetados atores ingleses com seus bigodinhos ridículos.
O corpo magro de Águeda Christine se encolheu, como o de um gato prestes a saltar sobre um rato. De seu lado, o francês fechou a mão em torno da haste do cachimbo.
Batota bateu palmas.
– Têm de sair agora, por favor. Acabou vosso tempo.
Foi uma atitude providencial. Um segundo mais e eles teriam se engalfinhado.

39. Os turistas destruíram todas as paisagens

– A conversa entre o francês e a inglesa foi deveras interessante – disse Batota enquanto nos dirigíamos à sala de reuniões a fim de buscar Foo Lee Shi Man. – Mas fiquei um pouco frustrado. Esperava mais investigação e menos palpites.
– Eu também. Achei que Águeda Chistine ia falar da manchinha vermelha no pescoço da falecida ou da Bíblia aberta na página 1313. Em suma, esperava que ela descobrisse o que eu notei logo de saída.
– E Sim Et Non ainda esteve pior – completou o português. – Ficou ali sempre parado como uma chaminé a soltar fumo. Não fez mais que lançar farpas a lady Águeda.
– Mas eram farpas interessantíssimas! – ponderei. – De todo modo, eles deixaram claras suas preferências por diferentes tipos de crime e métodos de investigação.
– Não concordo com a teoria de lady Águeda. O crime de quarto fechado não se adapta ao nosso caso, Campestre.
– Gostei mais da tese do francês, seu Manoel. – É mais plausível que alguém tenha fechado a porta após o crime, a fim de nos induzir ao erro.
Afundados nessas altas cogitações, chegamos ao salão. Sim Et Non e Águeda Christine assumiram seus lugares na mesa. Estirada em uma poltrona, Fedorova dormia. Ao lado dela, no chão, repousava uma segunda garrafa de malvada, já pela metade. Dax sumira e Bugres estava parado diante de uma janela aberta.
– Bela paisagem, não? – perguntou Batota, à guisa de saudação, batendo nas costas do argentino.
– Todas as paisagens do mundo foram destruídas pelos turistas orientais com seus impiedosos flashes – retrucou o poeta cego de Buenos Aires com sua voz rouca. – Mas Platão já previu essa catástrofe quando escreveu que todas as paisagens serão gravadas numa só chapa de aço pelos artesãos do Hades. Para Tarso de Creta, numa mesma paisagem estão presentes, sempre, as quatro estações. A neve já contém as sementes do verão e…
Desinteressado do que dizia o latino-americano, Batota voltou-se para o chinês:
– Senhor Foo, chegou a vossa vez.
O escritor chinês ampliou o sorriso. Perguntei-me: por que estará esse china sempre rindo? Não será esse o riso de alguém que permanentemente debocha dos outros?
Parêntese literário.
Reproduzo aqui trecho de artigo escrito por um renomado crítico literário francês, Jean Pierre de GrandMont Grenelle Des Oiseaux Rouges, sobre a obra de Foo Lee Shi Man:
“No rastro de teses de Soren Kierkegaard e Michel Foucault, afirmo que o reconhecido escritor Foo Lee Shi Man – dono de ridente máscara amarela, na qual se vê estampada, em todas as suas nuances, sombrias ou solares, a verdadeira alma chinesa – prefere, em suas composições autorais, registrar apenas fragmentos mínimos do todo universal, de modo a ressaltar atos que são paradigmas de elevação e queda, de glória e abjeção”.
Fim do parêntese.
Com um movimento flexível, Foo desviou de Batota e enveredou pelo corredor. O gerente do hotel e eu fomos atrás do chinês, que parecia deslizar sobre o piso de cerâmica.

*Jornalista e escritor.