O ROSTO DE MAO TSÉ-TUNG
Por Clayton Rocha – 1998
Estou em Pequim comemorando datas jornalísticas. Os raios do Sol enchem de luz os parques da grande capital. O dia 30 de abril de 1998 assinala a minha terceira visita à China em menos de dois anos. Ainda há pouco, vendo um rosto da história numa urna de cristal, no mausoléu da Praça da Paz Celestial, imaginei Mao Tsé-Tung vivendo toda a intensidade política daquele dia que representou o seu supremo momento de glória: 1º. de outubro de 1949, data na qual ele proclamou o nascimento da República Popular da China!
Chove em Pequim na véspera do dia 1º. de maio de 1998. Mao, Deng Xiao Ping e Jiang Zemin estão, com ar solene e túnicas escuras, na Praça Tiananmen. São escoltados pelos funcionários do Palácio do Povo e desfilam na Praça. Os seus retratos, em imensos outdoors, são cobertos com plástico por causa da chuva. Dos três, apenas um, em carne e osso, presidirá todas as comemorações e o imponente desfile das tropas chinesas, amanhã, às 9 horas, horário de Beijing. Ele é o herdeiro de Mao e de Deng. Ele se chama Jiang Zemin, o poderoso Presidente da China.
Ao demonstrar ao mundo, amanhã pela manhã, todo o seu poder, Zemin contará com tropas do Exército chinês, o Exército verde, que é o maior do planeta e que tem 4 milhões de homens. A solenidade do 1º. de maio está sendo ensaiada agora na Praça Tiananmen. Bandas, Hinos, tropa fardada, megafones e fotos dos grandes líderes chineses compõem o cenário do ensaio que o povo assiste, em estado de graça.
Inguelore de Souza, José Luis Souza, Roberto Engelbrecht e Paulo Gastal Neto, os meus companheiros de viagem, me perguntam, enquanto bebem chá no Grande Salão do Palácio do Povo, sobre as razões desta minha fixação pela China. Respondo no ato: eu nasci junto com a República Popular de Mao Tse Tung, cinco dias antes dela, em setembro de 1949. O Paulo Gastal Neto entende agora o que eu lhe disse ontem, entre um misto de preocupação com as longas filas e de euforia histórica: – Olha, eu não saio de Pequim sem ver o Mao! Ao que ele respondeu, de forma tranquilizadora: nem eu !
Depois de longa espera, eu tenho acesso ao Mausoléu de Mao. Dez por cento da população chinesa já passou por aqui, em busca desse rosto da História. Eu o vejo num caixão de cristal lacrado e a vácuo: o seu corpo está coberto com a bandeira do PC, a foice cruzada com o martelo, sobre o fundo vermelho. Ele dorme naquela urna cercada de guardas desde os 10 minutos da madrugada de 9 de setembro de 1976. Vendo-o, recordo-me da histórica decisão do Politburo, quando não se sabia o que fazer com o corpo de Mao Tsé-Tung: – “O governo da República Popular da China e a Secretaria Geral do Partido Comunista informam que o corpo do fundador do Partido Comunista, fundador do Exército Popular de Libertação e fundador da República Popular da China será preservado eternamente.”
Os comunistas chineses estavam trocando, naquele instante, através daquela decisão, a palavra de Mao pela sua imagem. Se Mao não podia mais comandar a China, o mito haveria de governar por ele. E as suas frases de efeito, que segundo o Dr. Li Zhisui, seu médico particular, eram “maravilhosamente teatrais”, viveriam ainda na memória do emblemático povo chinês. O homem que gostava de “atrair as cobras para fora dos esconderijos”, estimulando os outros a abrir o jogo, de modo que pudesse atacá-los, agia do mesmo modo que o primeiro Imperador Tang, célebre na China por dominar homens e mulheres ao descobrir suas fraquezas. Mao também reinaria assim durante os seus vinte e sete anos de poder supremo.
Em 1981, cinco anos depois de sua morte, o Comitê Central do Partido Comunista Chinês proferiu um veredito oficial sobre a vida do líder: “Resolução sobre Certas Questões na História de Nosso Partido desde a Fundação da República Popular da China”. Nele, Mao Tse Tung é retratado como um grande revolucionário, cujas contribuições positivas superaram as consequências de seus erros. Pois desde a publicação deste comunicado oficial, em 1981, e até os dias de hoje, o desejo de cada cidadão chinês é o de ver Mao. Viagens de longas distâncias são preparadas durante anos. Cem milhões de chineses já as realizaram.
Estamos agora em 1998, dia 30 de abril. Um casal, com o filho menor pela mão, ajoelha-se diante da enorme estátua branca do líder da Grande Marcha, à entrada do Mausoléu. Nela, o fundador da República Popular da China está sentado, esboça um sorriso e tem os braços estendidos, em sinal de boas vindas. Os três chineses depositam flores junto aos pés de mármore do Camarada Mao. E fazem reverência ao Presidente batendo várias vezes com a cabeça no chão. Saem depois em silêncio. Há um brilho nos olhos do menino. Ele viu Mao. Aquele mito ainda é a Pátria.
Enquanto me retiro, e me deixo envolver por toda a sorte de interpretações, situação esta que me deixa confuso, uma imagem de Mao sai comigo daquele Mausoléu sem que ninguém se aperceba, porque eu a carrego num lugar qualquer da minha mente.
Decididamente, aquele rosto envolto em grossa camada de cera que dorme lá dentro tem feições serenas e me parece querer ser um guia disposto a sobreviver no silêncio! Essa sua presença que se mostra tão forte nos ambientes chineses significará que ele conseguiu o perdão pelos seus pecados? Terá ele apagado da memória do povo todas as consequências dos seus crimes? Mao Tsé-Tung é mesmo um mito? Mao foi realmente um herói da China? Não terá sido ele um grande equívoco da história chinesa? Como se explica essa idolatria popular pela sua imagem, vinte e dois anos depois de sua morte?
É o que me pergunto enquanto compro a fotografia oficial do Presidente numa das lojas subterrâneas situadas ao lado do Palácio do Povo. Estou, assim como fazem os chineses, gastando yuans em sua memória. Desconfio que Mao continua o mesmo: multiplicando-se em imagens. E arrecadando dinheiro para a China.
Mao Tsé-Tung está discursando na foto que acabo de comprar. De uniforme verde, lá no balcão principal de seu Palácio, ele tem os braços erguidos para o povo. Talvez o Presidente esteja dizendo nessa fala que o Grande Timoneiro viverá para sempre no coração dos chineses.