A MISTERIOSA MORTE DE MIGUELA DE ALCAZAR – 16

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A MISTERIOSA MORTE DE MIGUELA DE ALCAZAR

Lourenço Cazarré e Pedro Almeida Vieira*

56. A morte do siberiano que lia os livros de Pablo Conejo

As ameaças da ficcionista de São Petersburgo surtiram efeito porque, quando voltei a falar, minha voz tremia muito:

– Dona Fedorova foi a primeira pessoa a levantar aqui a possibilidade de morte. Ao reclamar do garçom, que demorava com a cachaça, ela perguntou: Será que o condenado aproveitou a viagem para assassinar Mikahilucha?

Silêncio na sala. Os escritores estavam positivamente surpresos com o meu desempenho inicial.

Apertando com fúria o gargalo de uma garrafa de cachaça ainda tampada, com o olhar fixo no meu pescoço, Fedorova dava a indicação do que faria se o delegado Aroeira não estivesse por ali.

Mesmo amedrontado, continuei:

– Mais tarde, ao investigar o quarto da falecida, dona Fedorova falou que estava rezando pela “atormentada criatura” que havia matado a espanhola…

– Não vejo nada demais nessa frase – atalhou-me Aroeira. – Foi a reação natural de uma pessoa religiosa.

– Mas dona Fedorova é ateia! – argumentei. – E nem sabíamos ainda que dona Miguela havia sido assassinada! Como poderia ela saber que o criminoso estava atormentado pelos remorsos? A não ser que fosse ela própria a assassina.

– Raciocínio razoável – reconheceu o delegado.

– Mas teve mais – continuei, já estava gostando de desempenhar ali o papel de acusador. – Em seguida, dona Fedorova disse que a alma da escritora espanhola ainda vagava pelo hotel…

O delegado voltou-se para a russa e indagou:

– A senhora dispõe de poderes mediúnicos?

Como a escritora não respondesse, continuei:

– Dona Fedorova disse ainda que nenhuma mulher, nem mesmo uma espanhola, aceitaria morrer com uma mantilha tão horrorosa quanto a usada por dona Miguela. Daí, ela concluiu que se tratava de uma morte fulminante…

– Considerações sobre vestuário não têm importância em uma investigação tão intrincada quanto esta…

– Têm, sim, delegado – discordei. – Passaram a ter agora que se sabe que dona Miguela teve um ferimento na cabeça. Morreu sem poder tirar a mantilha. E, para culminar, quando se retirava do apartamento, dona Fedorova mostrou-se invejosa da maior vendagem dos livros de dona Miguela.

Ouvimos um crash. Era o gargalo da garrafa cedendo à pressão da mão de Fedorova. A escritora russa bateu a mão na mesa para se livrar dos cacos e, a seguir, acendeu um charuto, das mesmas dimensões do anterior.

– O que diz a senhora depois de ouvir o nosso jovem centauro? – indagou o policial. – Reconhece que está em maus lençóis?

Fedorova levantou-se de um pulo, já sugando o charuto e expelindo furiosamente a fumaça, e deu início ao seu já manjado pranto dramático. Batia no peito, puxava os cabelos e salmodiava:

– Oh, a doce Mikahilichenka foi levada deste mundo pela sua própria arrogância. Tudo começou no aeroporto de Paris, enquanto esperávamos a chamada do vôo para o Brasil. Falávamos mal de editores, críticos e autores de livros de auto-ajuda. Subitamente, ela me perguntou se eu conhecia um novo método de envenenamento. Virgem do Crato, oxente, para que Mikahila levantou aquele assunto?

Sentindo que ganhara a atenção do público, a russa imprimiu maior dramaticidade ao ritual de autoflagelação: passou a esbofetear-se também:

– Mika me disse que precisava assassinar, com morte inovadora, uma personagem do livro que estava a escrever. Querendo ajudar aquela quenga, contei a ela que, na Sibéria, uma muié tinha matado o corno do marido colocando veneno nos livros do paraguaio Pablo Conejo, que o chifrudo vivia lendo. Expliquei direitinho que a muié danada passou estricnina no pé das páginas, pois era justamente ali que o cretino colocava seus dedos depois de lambuzá-los na língua pegajosa.

57. Aqui o impossível ocorre a todo instante

Notei que naquele momento Águeda Christine lançava um olhar triunfante na direção de Sim Et Non. A história de Fedorova reforçava a tese do envenenamento levantada inicialmente por ela.

– Em resposta ao que falei, a soberba Mikuchina me disse que só uma besta de uma camponesa russa podia acreditar numa história tão furada. E, desaforada, concluiu: “Deixe de ser ignorante, Feda!” Ora, nós, russos, não toleramos esse tipo de ofensa intelectual. Fervi de ódio.

Após breve pausa, para que alguma fumaça fosse sacada do charuto e expelida, Fedorova continuou:

– De Paris ao Rio, viajamos lado a lado. Notei então que Mikólia molhava os dedos na saliva para virar as páginas da Bíblia, mas segurando-as pelo alto. Percebi também que estava lendo o Apocalipse. Perguntei se estava gostando. Debochada, ela me respondeu que o Apocalipse é a melhor novela policial de todos os tempos porque, no fim, não fica um sobrevivente para contar a história.

Em uma breve parada para reabastecimento, a russa sugou um quarto de uma garrafa de absinto, sem pestanejar, e avançou:

– Como Mikutina era esnobe! Sabem o que ela me disse depois? Disse-me que de tanto ler e reler o Apocalipse já estava quase decifrando a profecia. Aquilo foi demais pra minha religiosa alma russa. Minha raiva se transformou em ódio. Aí, quando ela foi ao banheiro do avião, peguei de minha bolsa uma ampola de estricnina concentrada e derramei no alto das páginas do Apocalipse. Depois, aproximei o livro santo da saída do ar refrigerado, para que o veneno secasse rapidamente…

Em voz alta e grave. Aroeira a interrompeu:

– Quer dizer, então, que a senhora Smerdlova assume publicamente a autoria do assassinato por envenenamento de dona Miguela?

– De jeito nenhum! Reconheço que, arrastada por uma raiva bem fundamentada, derramei um pouco de veneno nas páginas da Bíblia da desgraçada. Mas eu não a queria matar. Só queria provar a ela que é possível envenenar um vivente com aquele método siberiano.

– Não me interessa sua intenção – reagiu Aroeira. – O que me importa é o resultado do seu ato criminoso.

– Arre, égua, delegado! Raciocine comigo: se o argentino pode alegar que bilhete dele não causou o enfarte, eu também posso dizer que o meu veneno não matou a jararaca. Como poderia ela morrer depois de ler apenas umas dez páginas? Ora, o siberiano que lia Pablo Conejo morreu depois reler cinco vezes o livro Vera se decide a falecer-se, o que, convenhamos, mesmo sem veneno, mataria um elefante. A polícia russa considerou, naquele caso, que a leitura foi mais devastadora que o veneno.

– A senhora assume o assassinato ou não? – perguntou o policial.

– Não. Só aceito ser acusada de ter botado no organismo dela a porção de estricnina. Mas vou requerer uma perícia. Ao verificarem o nível de veneno no sangue, certamente concluirão que a espanhola não morreu por minha culpa.

O delegado, que parecia desalentado porque um segundo suspeito estava a escorrer por entre seus dedos, concordou com a russa:

– No Brasil, tudo pode acontecer. Aliás, aqui, o impossível ocorre a todo instante… Bem, se a estricnina e o enfarte não mataram a velhota, temos que seguir procurando um culpado, certo?

Num rápido e único aceno, todas as cabeças ao redor da mesa concordaram com ele.

O delegado voltou-se novamente para mim:

– Quem o nosso Sherloque dos pampas vai acusar agora?

Lancei um rápido olhar à minha caderneta em buscado do nome do número dois na minha escala de suspeição.

58. A fundamentação ética dos atos humanos

– Georges Sim Et Non!

– Te cuida, malandro! – o francês apontou o cachimbo para mim, como se ele fosse uma pistola. – O inferno está cheio de neguinho dedo-duro! Se tu provar o que tu diz, dou meus punhos pro delegado enfeitar com algemas. Mas se tu não provar, eu vou botar meia dúzia de advogados em cima de tu. Calúnia e difamação. Os causídicos vão te arranjar tantos processos que tu vai ter que alugar um apartamento perto do Fórum. Pra economizar na condução.

– Não tente amedrontar minhas testemunhas! – berrou Aroeira e bateu com a mão na mesa. – Se um sujeito aqui tem o direto de encagaçar alguém, esse sujeito sou eu. Pronuncie-se, jornalista!

Assustado com a ameaça pistoleira do francês, recomecei em voz baixa:

– Tentarei reproduzir aqui frases estranhas que o senhor Sim Et Nom pronunciou. Porém, se eu estiver enganado, espero que ele, por favor, me corrija.

– Deixe de ser cagão, Campestre! – urrou Aroeira. – Vamos ao que interessa!

– Enquanto investigava o apartamento, o senhor Sim Et Non levantou a tese de envenenamento do almoço de dona Miguela. Como mostrou o laudo, arsênico foi misturado à comida. Seria só coincidência? Além disso, o senhor Sim Et Non chamou dona Miguela de “bruxa espanhola” e disse que ela morreria envenenada se mordesse a língua. Seria outra coincidência?

– Sacanagem! – reagiu o francês. – Esse moleque é um pilantra. Eu jamais misturaria arsênico francês num prato de feijão-com-arroz. Ainda se fosse um fricassé de faisão… Delegado, quero registrar o meu mais veemente protesto…

– Envie seu protesto ao embaixador da França – respondeu o policial, fazendo uma vênia. – Prossiga, neto de Getúlio Vargas!

– Dona Águeda disse que o senhor Sim Et Non odiava profundamente dona Miguela porque ela era a escritora policial mais apreciada pelos críticos franceses.

– Nunca vi pivete mais otário que esse aí! – disse o escritor francês e, com dedos trêmulos, encheu de fumo seu cachimbo. – Como é que eu, francês de Paris, poderia ter inveja de uma espanhola?

– O senhor quer dizer que não tem nada a ver com a morte de dona Miguela? – indagou o delegado.

– Isso também não! – respondeu o gaulês. – Eu também tirei a minha lasquinha.

A seguir, baforando, com as mãos às costas, ele passou a caminhar pela sala:

– Vou falar a verdade. Na batata. Depois do almoço, eu passava pelo corredor. Trazia na mão uma caneta esferográfica baratinha, de plástico transparente, sem carga dentro. A caneta estava pronta para funcionar como uma pequena zarabatana.

Estávamos todos tão atentos à narrativa do francês que o silêncio entre uma frase e outra poderia ser cortado com uma tesoura.

– Aprendi a soprar zarabatana na África – continuou Sim. – Quando moleque, eu passava férias na fazenda do meu avô, que criava hipopótamos no Senegal. Lá, de manhã, eu lia Molière para os nativos que, em troca, à tarde, me ensinavam a soprar zarabatana… Pois bem, hoje, vinha eu por este corredor pensando. Aliás, franceses estão sempre refletindo sobre coisas como o obscuro sentido da existência, o trágico destino da humanidade e a fundamentação ética dos atos humanos. De repente, virei o rosto. O que vi pela porta aberta do apartamento? Miguela de Alcazar comodamente instalada em uma poltrona lendo um livro. Num movimento muito rápido, furtivo, levei a zarabatana improvisada aos lábios e soprei.

59. Abrir o coração não é o mesmo que confessar

– O senhor poderia nos dizer o que havia dentro da zarabatana? – perguntou Aroeira.

– Um pequeno dardo – respondeu o francês.

– E o que havia na ponta desse dardinho?

– Não apenas na ponta – detalhou o escritor francês. – O dardo todo era puro veneno, uma substância líquida endurecida por congelamento.

– Em que direção esse dardo foi soprado?

– O alvo era uma velha senhora espanhola.

Um mosquito sobrevoou a mesa. No seu vôo errático, avançava de lado, como um avião de caça atingido na asa. Provavelmente havia picado Fedorova.

Aroeira, que começou a piscar doidamente os olhos, como se tivesse perdido o controle das pálpebras, indagou:

– De que sustância fora feito o tal pequeno dardo?

– De peçonha de víbora. Mais que pura. Concentrada.

Várias cadeiras foram movimentadas ao mesmo tempo. Vários escritores estavam dispostos a fugir dali.

– Onde se alojou o tal dardo? – indagou o policial.

– Em uma grossa veia azulada de um enrugado pescoço.

– Parece que o senhor Sim Et Nom é o primeiro a admitir aqui, claramente, que pretendia matar a vítima.

– Não, meu irmão, não foi tentativa de homicídio. Eu só soprei aquela zarabatana pra ganhar uma aposta literária.

– Explique-se! – rosnou Aroeira.

– Quando desembarcamos no aeroporto do Rio de Janeiro, Miguela me perguntou se eu conhecia algum método realmente surpreendente e criativo de assassinato. Contei a ela que cientistas franceses inventaram recentemente um método de congelar veneno na forma de pequenos dardos. Carregados em estojo térmico, esses dardos só podem ficar uns poucos segundos na mão de quem vai arremessá-los. Soprados em zarabatana, matam a vítima na hora, caso acertem numa veia. No Rio de Janeiro, quando concluí minha fala, Miguela caiu na risada e disse: “Dardo de veneno congelado? A única invenção científica decente dos franceses é o perfume, criado para substituir o banho”.

Batota soltou uma bela gargalhada. Compreendi sua reação. No Brasil, é raro alguém contar uma piada que não seja de português.

– Putisgrila! – grunhiu Sim Et Non, com os lábios tremendo. – Naquela hora, o sangue me subiu aos cornos. Pensei: tu vai ver só, mocreia, se existe ou não o tal dardo! Ao chegar aqui neste hotel, meti na geladeirinha do meu apartamento uma mostra do tal veneno, que eu trazia comigo. Então, quando passava pelo corredor, me veio a ideia. Fui ao meu apartamento, abri a geladeirinha e…

– Confissão plena, completa e absoluta! – determinou Aroeira. – Considere-se preso!

– Manera, delegado! Eu não confessei nada, apenas abri meu coração, como fizeram Bugres e Dornascostasviskáya. Eu, em tese, sou apenas o terceiro assassino.

– O senhor, por acaso, também vai alegar que sua dose não foi letal?

– Não! Eu não vou usar uma desculpa tão esfarrapada. Eu posso provar que Miguela já estava morta quando meu dardo lhe atingiu o pescoço. Além disso, veneno não mata víbora. A homeopatia diz que semelhantes se anulam. Soro antiofídico se faz com veneno de serpente.

*Jornalista e escritor.