A Era da Inocência
Em 1949, as investidas ao Laranjal foram viabilizadas através de um pontilhão de madeira, construído sobre o arroio Pelotas, entre duas charqueadas, uma delas a São João, onde foi filmada da minissérie global A Casa das Sete Mulheres. Chegava-se lá pela rua das Traíras, no bairro Areal, pouco depois do obelisco da Abolição da Escravatura que, em Pelotas, antecedeu em alguns anos a edição da Lei Áurea.
A decisão oficial da construção da ponte sobre o arroio Pelotas, pela Câmara de Vereadores, é de 1835. Isto mesmo, no início da Revolução Farroupilha.
No entanto, só foi concretizada mais de um século depois, oferecendo pouco suporte para o peso dos veículos. Passavam de um a um, lentamente.
Etcheverry, apaixonado a vida inteira pelo Laranjal, guardou em cadernos bem organizados, toda a história do balneário. Por muitos anos, produziu a coluna Almanaque, no Diário Popular. Aqui, Etcheverry pede a palavra: “Eu travei relações com o Laranjal em 1936, mais ou menos. Mário Monteiro Peiruque, então meu futuro sogro, formava caravana com as famílias, José Bollick, Maurílio Vilar, Francisco Jaccotytet e Abílio Pacheco, entre outras”.
“Com a licença dos proprietários, Artur e Judith Assumpção, os caravaneiros iam acampar na sua estância. E lá se apanhava sol, ia-se ao banho, descansava-se, lia-se à sombra do abundante mato, matava-se cobras e lagartos. Mudava-se de roupa atrás dos automóveis ou de esconderijo natural. Na ida e na volta, geralmente tirava-se um “peludo”, que era ficar com o carro enterrado na areia. A fila de veículos para esperar a balsa “de marombas” era imensa, sob nuvens de mosquitos”.
Descontando-se os raros proprietários de barcos e que faziam o trajeto dos clubes náuticos no São Gonçalo até a praia, já na lagoa, a batalha pela balsa sobre o Pelotas era feroz. E, às vezes, perdida: “Com surpresa fomos proibidos de chegar até a praia porque o encarregado da balsa tinha ordem de não deixar passar o pessoal que não fosse “escolhido”. Pessoal de caminhão não passa. Voltamos sem protestar, porque somos pobres operários e não temos direito à praia. Se preciso vamos todos a esse jornal confirmar”. É o texto de carta publicada pelo Diário Popular em 1939, ano em que a família Assumpção já cogitava o loteamento da área.
Na edição seguinte, uma longa resposta, assinada por O Balceiro. Nela, o piloto da balsa explicava que o problema não era discriminação social. Era o caminhão de per si. Todos os caminhões estavam proibidos de passar, sob pena da balsa ir a pique.
Depois de inaugurada a ponte, o novo paraíso estava aberto aos ansiosos veranistas. Só faltava “aperfeiçoá-lo”. Já havia reclames no jornal: “Fruteira Baiana, filial, avisa sua distinta freguesia que montou um bom serviço de restaurante, churrascaria e café, com reservados para famílias. Peça com antecedência, galinha com arroz e canja. Ao lado, um bem montado vestuário, onde alugam-se calções e “maillots”. Clientela haveria.
“O Laranjal recebeu anteontem, uma verdadeira multidão de banhistas. O aprazível lugar, pouco depois das 5 horas da madrugada, apresentava um aspecto alegre e os sítios eram disputadíssimos. Centenas e centenas de automóveis cortavam a estrada, uns desafiando o sangue frio dos passageiros, outros menos perigosos e outros ainda “atolados” na areia. A construção da ponte evidenciou ainda mais a preferência que os pelotenses têm pela sua popular praia. Praia relativamente nova, o Laranjal está a apresentar, ainda, autêntico rosário de problemas”.
E vinha uma imensa lista: estrada, saneamento, água, luz, bares, banheiros, enfim, tudo.
Três anos antes, em 1948, um dos empreendedores garantia a um repórter:
“Quando escrever sua reportagem, diga que água daqui não precisa ser fervida. É puríssima e não possui colibacilos”. “Quanto ao saneamento, uma canaleta higiênica já foi construída, fazendo o despejo para um banhado distante da praia, que assim verá conservada a sua excelente condição de salubridade”. Era o outro lado do paraíso para a incubadora natural da fauna lacustre.
SEGUE
(“Aqui, tudo começa grande na mão de um rico e termina fatiado nas mãos de um monte de pelados”, grafite visto na estrada Pelotas-Laranjal).