FIOS DO DESTINO
Por Clayton Rocha
Seu pássaro prateado espatifou-se no chão, após enredar-se em fios invisíveis do destino. Levou, junto, depois de 25 anos de aviação e de mais de dez mil horas de voo, um estilo de pilotagem que fez dele o Comandante escolhido pelos Governadores do Estado e pelos principais industriais do Rio Grande do Sul.
Salmeron K. Ferreira Alves, 45 anos, mulher e 3 filhos, sócio-proprietário da Helicópteros S/A, é antes de tudo, uma amizade sólida que se vai. Conhecemo-nos em 1987, durante as Operações Taim. Salmeron e Alberto Pillar Grossi, filho da Deputada Esther, hospedavam-se em minha casa e estabeleceram comigo, durante esses últimos 14 anos, gratificantes vínculos de amizade. Tantos, como disse-me o Comandante Grossi, que Salmeron costumava deixar sobre o assento reservado ao Governador, no início de cada vôo, algumas notícias sobre ações jornalísticas minhas, para que Simon, Guazzelli, Collares, Britto e Olívio as lessem. Ele era assim: um amigo generoso na sua permanente devoção aos seus afetos, convencido de que nenhuma coisa humana se mantém por si só, mas apenas existe quando renovada.
Amava as nuvens e as árvores, as águas calmas e os ninhais de garças das primaveras do Taim, parecendo estar, por vezes, quase pronto para sair da vida. Por ser assim, tenho a ideia de que seu espírito espiava a vida de altitudes que já não eram as ideais. Ele queria enxergar melhor, talvez de um outro espaço, que fosse inatingível pela máquina.
Acho que o Salmeron tinha autonomia para subir mais. E foi então o que fez. Porque estava espiritualmente preparado. Sonhara que os corpos são efêmeros como nuvens. E que nascer e morrer é o mesmo que sonhar que se nasce e que se morre. Lera sobre Buda, em livro de Jorge Luis Borges que eu lhe recomendara. E compreendera então que os homens no sono profundo são o universo. E que o estado de alma no sono profundo é o mesmo que alcançará depois da libertação.
Salmeron sabia ainda não haver nada no universo que não fosse passageiro e ilusório. Ele tinha consciência que mais fugaz que o brilho de uma folha levada pelo vento, era essa coisa, a vida! E dela saiu sem aviso prévio, por conta de uma fatalidade: um fio de alta tensão que não foi visualizado, aquele que era talvez o fio do seu próprio destino; e um vôo de baixa altitude seguido de uma explosão, labaredas e a volta ao pó. – “Dele vieste, a ele voltarás!” Ele aceitava a frase bíblica. Mas agora a sua própria fé impunha uma condição: a esse pó retornaria, sim, e sem medo, porém preservando uma outra verdade. Em sua devoção, estava plenamente de acordo com aquela inscrição que tanto apreciava, e que cobre a tumba de Senna: – “Nada poderá separar-me do amor de Deus!”
No instante em que me despeço do Comandante Salmeron, essa amizade escolhida na medida em que amizade é eleição, ouço uma voz distante, uma voz de monge, que devolve-me ao interior do explendido templo de Sanjusangendo, construído em meados do século XII, incendiado na metade do século XIII, reconstruído em cerca de vinte anos, cujo corredor extenso guarda a imagem principal do Buda, totalmente dourada, com 3 metros e meio de altura, tendo ao seu lado mil outras imagens, cada uma de metro e meio, que reproduzem a figura de Kannon, folheadas a ouro.
Pois foi ali, em Kioto, no Japão, que ouvi, tempos atrás, uma das muitas verdades budistas que permaneceram guardadas com letras de fogo em minha mente.
Ela diz:
-“ Enquanto viveis neste mundo de aparências, não tereis sorte duradoura. A execução de assuntos mundanos não tem fim. Na carne e no sangue não há permanência. Mara, Senhor da Morte, nunca está ausente. O homem mais rico parte só. Estamos obrigados a perder aqueles que amamos. Donde quer que olhais, nada de substancial há ali.
Compreendeis ?”