ARTIGO – DEVAGAR COM O ANDOR QUE O SANTO É DE BARRO

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DEVAGAR COM O ANDOR QUE O SANTO É DE BARRO
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Neiff Satte Alam*
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Ali, onde a Caatinga se encontra com o Cerrado, em meio a arbustos retorcidos pela falta de água em solo arenoso e por vezes substituída por barro seco e rachado do antigo leito de algum riacho, prosseguia a procissão. Um andor rústico, feito por mãos calejadas e de pele seca e escurecida pelo sol impiedoso que reinava em um céu limpo e desprovido de nuvens, era o suporte do Santo feito de barro cozido por algum artesão das redondezas.
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Aquele grupo ia ganhando adeptos na medida em que passava pelos casebres. Alguns jovens, velhos e crianças com seus olhares de esquecimento, juntavam-se ao grupo. Um lampejo de esperança podia se perceber no semblante de todos.
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Ao anoitecer, já se percebia uma multidão. Sedentos, esfomeados e com os membros doloridos, colocaram o andor em cima de algumas pedras cuidadosamente arranjadas, acomodaram-se em volta do Santo e começaram a rezar com fervor.
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Tal foi a força da reza que o Santo, atento a tudo, ergueu-se do andor, esticou as pernas e os braços, com voz grossa, um pouco roca, iniciou um discurso primeiro calmo, depois mais forte.
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Prometeu o Paraíso, dias melhores, mais chuva, menos seca…prometeu cuidar de todos, dar casa, alimento, roupas e oportunidades de uma vida melhor com saúde, educação e segurança.
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Primeiro um pouco assustado, depois atônito, finalmente com esperança, o povo saudou com aplauso e palavras de agradecimento e de apoio aquele Santo que se  erguia majestoso e convincente.
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Milhares de pessoas se juntaram ao cortejo. À noite, sempre no mesmo horário, o Santo fazia sua pregação. Na segunda noite choveu. O Santo cumpria sua palavra, pensaram todos. Levaram o Santo, sobre o mesmo andor, para outros lugares.
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Já não somente os pobres, mas pessoas de todas as classes sociais, dos habitantes dos bolsões de miséria até os empresários bem sucedidos começaram a adorar o Santo. Um andor novo foi encomendado. Feito de material nobre coberto por rico veludo vermelho com filigranas em ouro.
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O Santo já não falava apenas de noite. Durante parte do dia discursava para os ricos empresários, reservava a noite para falar aos pobres.
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A partir daí o andor passou a circular muito, ser carregado por muitos, alguns com fé, outros com esperança, mas muitos se aproveitando dos frutos que aquela imagem representava.
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Um dia, um triste dia, de tanto passar de mão em mão, o andor despencou dos braços já fracos e com pouca esperança dos que o seguraram por tanto tempo com ardor que só ocorre com  os humildes.
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Ao cair, o Santo de barro quebrou…
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*Professor e um dos criadores do Pelotas Treze Horas