A VERDADEIRA HISTÓRIA DA VELHA ETP (2)
O professor João Aloísio e os estalinhos
Lourenço Cazarré*
Encerrei a crônica que deu início a esta saga cômico-escolar informando que a figura mais marcante que conheci na velha Escola Técnica de Pelotas foi um inspetor de disciplina, Seu Mando. Era um homem que amava seu duro dever. Gostava de identificar todos os pilantras para puni-los imediatamente e com severidade. Os outros inspetores não eram tão rancorosos. Mais tranquilos, ansiavam por uma aposentadoria que viesse livrá-los da obrigação de amansar aquelas hordas de jovens bárbaros.
Lembro de outro bedel, Seu Manuel. Se era lusitano não sei, mas que tinha uma fachada de agricultor nascido no Douro – de onde veio meu avô materno –, isso tinha. Havia ainda um inspetor de ascendência germânica, bem mais idoso, creio que chamado Seu Eliseu, que se movimentava pouco e lentamente por trás de seu oscilante e vastíssimo ventre.
Corria uma piada:
Dizia um patife:
– Vi Seu Eliseu chorando no banheiro.
– Por quê? – indagava um cretino.
– Porque não conseguia alcançar a bragueta.
Explicando o chiste: bragueta, no castiço linguajar de Pelotas, é aquilo que os tupinambás e outros silvícolas chamam braguilha.
Esquecimento e acréscimos
Passemos agora aos professores. Lembro de mais de uma dezena deles, os – por um motivo ou outro – realmente inesquecíveis. Pretendo fazer desfilar por aqui alguns deles, mas sempre temendo ser injusto porque, depois de quase sessenta anos, as minhas lembranças escolares estão contaminadas tanto pelo esquecimento quanto pelos acréscimos com que tentei, insistentemente, torná-las mais engraçadas para meus ledores.
Em suma, retocando fatos ou inventando-os, todo escrevente de opúsculos – meu caso – luta para recriar um passado bem mais divertido e movimentado do que realmente foi.
Pau que bate em Chico
A disciplina na ETP era rígida. Mas não era muito diferente da aplicada em outra escola federal, o Colégio Agrícola Visconde da Graça. No CAVG, asseguram maus elementos que por lá foram encilhados e amansados, a estudantada (na sua quase totalidade vinda das terras selvagens onde se pratica o gauchismo) também era vigiada por bedéis impiedosos. Aliás, talvez se possa dizer que, nos anos 60, nas melhores escolas de Pelotas, o pau que batia em Chico também sapecava Francisco. No Gonzaga e no Pelotense também eram muitos os inspetores de disciplina cônscios de sua sagrada missão, que era dar um jeito numa gurizada efervescente de hormônios.
Mestre (ralador) João Aloísio
O mais fabuloso dos meus professores de Português foi um homem chamado João Aloísio Youngs (não estou certo da grafia do sobrenome!).
Alto, parrudão, tinha uma cintilante calva que ele fazia questão de amenizar. Com uns poucos fiapos de cabelo que conseguia puxar da parte esquerda do crânio, ele fabricava – com auxílio de brilhantina – uma estreita faixa de melena besuntada que, colada à pele, lhe atravessava a cachola até perto da orelha direita, onde se unia à ralíssima faixa lateral de pelos que ali, timidamente, vicejava.
Mestre João Aloísio era um dos principais “raladores” da Escola. Ralador era aquele educador que não dava moleza aos engraçadinhos e vagabundos. Ou seja, era dos que apresentavam provas que faziam fumegar a cabecinha dos malandros, desatentos ou apoucados de fosfato.
Professor modelar
Utilizei-me do professor João Aloísio – e peço perdão por isso aos meus anjinhos da guarda – como modelo para construir alguns vilões… desculpe, quis dizer, professores de Português… nos livros que escrevi para adolescentes espinhentos.
O sotaque germânico
Ah, eu ia me esquecendo do detalhe mais impressionante: o nosso mestre-escola tinha um fortíssimo sotaque alemão! Ele aparece assim no meu A guerra do lanche (livro da coleção Vaga-lume, da editora Ática):
“Quando entramos, ele já estava em sala, na mesma posição em que o encontraríamos dali para a frente, durante quatro longos anos: de pé, ao lado da mesa, a cabeçorra totalmente calva, caída para o lado esquerdo, um sorriso zombeteiro pendurado na cara vermelhusca e um brilho azul nos olhinhos miúdos. – Pom dia, senhorres e senhorras. Acapou a princateirra to Primárrio. Acorra é fero na poneca! Diante de nós, com quase dois metros de altura e mais de cento e vinte quilos de dureza, estava o tristemente célebre professor Kurt Schulmeister, que por duas gerações ensinaria os alunos daquele colégio a odiar a língua portuguesa.”
Marmanjos e senhoritas
Preciso explicar aqui que quando escrevi A Guerra do Lanche, em meados dos anos 1990, resolvi que a minha escola fictícia atenderia meninos e meninas. Por quê? Porque eu teria de gastar muitos parágrafos para explicar aos meus prováveis leitores que, trinta anos antes, muitos colégios eram exclusivos para marmanjos ou senhoritas.
Conceitos de estupidez
Vou reproduzir aqui mais um trechinho de A guerra do lanche, que foi lido às gargalhadas pela minha neta mais velha, a Gigi, de doze anos, escandalizada, e que me disse o seguinte: – Puxa, vô, não sei como você consegue ser tão politicamente incorreto!
Vamos ao caso.
No livro, o professor Schulmeister pede a seus alunos que escrevam uma redação, e diz: “- Por meio dela (a redação), poderei descobrir o grau de atraso de vocês. Saberei distinguir os burros, os ignorantes e os perfeitos idiotas.” Uma aluna debochada indaga:
“- Mestre, o senhor poderia me explicar a diferença entre esses diversos conceitos de estupidez?
– Claro. A senhorita, por exemplo, é ignorante porque não sabe, entre outras coisas, o significado da expressão “ser um burro”. Mas, mesmo que eu lhe explicasse o sentido implícito dessa expressão, a senhorita não o entenderia. Portanto, além de ignorante, a senhorita é também burra. Sendo simultaneamente ignorante e burra, a senhorita se enquadra na terceira categoria. É uma perfeita idiota.”
É só humor, gente!
Aqui precisamos fazer uma rápida pausa para um refrescante esclarecimento: Alô, papais e mamães modernos, cônscios da inalienável dignidade de seus filhos! A guerra do lanche é só um livrinho de humor, tá bom?
Uma bela redação, mas não terá sido copiada?
Sigamos com a nossa epopeia.
Em outro livro – A fabulosa morte do professor de Português (Autêntica, 2013) – criei um terrível professor da língua pátria, Severino Severo, que ao longo de um magistério de seis décadas teve grandes alegrias ralando e reprovando incontáveis estudantes. Nessa obra inventei um episódio, que, se não tropeço na memória, quase certamente ocorreu entre aquele educador de origem tudesca e este rabiscador que vos conta o causo.
Diz um aluno:
“- Desde garoto eu já sonhava ser escritor. Mas tive um sério problema aos onze anos. Na quinta série, escrevi a mais bela das minhas redações sobre a primavera, mas recebi nota quatro…
– Credo – espantou-se alguém. – Quem era seu professor?
– Severino Severo. Primeiro ele elogiou muito minha redação, mas depois comentou que ela estava tão boa que devia ter sido copiada de um livro. Eu caí no choro. Naquele momento quase desisti de ser escritor…
Minha confissão foi cortada por um berro:
– Plagiário!
Eu me voltei e vi Severino Severo ao meu lado, na ponta dos pés, braço estendido, indicador espetado, bochechas vermelhas:
– Se você tivesse provado, na época, que não havia copiado aquela redação, eu lhe teria dado um dez!
– E como eu provaria? Só se mostrasse ao senhor todos os livros da cidade.”
Uma digna nota 7
Bem, retornando ao nosso mundinho sem graça, para aclarar a verdade, se é que a verdade existe. Preciso aqui informar que, pelo que me recordo, nesse episódio em que não consegui provar que não havia sugado de um livro aquela redação, recebi uma nota bastante digna (7) do estimado professor João Aloísio.
Pergunto agora: como eu, frequentador fanático da Sessão Juvenil de Biblioteca Pública Pelotense, poderia provar minha inocência? Levando o mestre até á para verificar com dona Celina (a bibliotecária) a livralhada que eu havia lido nos últimos meses?
O fatal apelido
Quero lembrar aqui um acontecimento que teve a ver com o apelido do professor João Aloísio. Sim, ele tinha um apodo, uma alcunha, um cognome. Diziam os malfeitores que inventaram essa denominação que, certo dia, em sala de aula, o pedagogo teria pronunciado a seguinte sentença:
– A rrôda ta caroça tá rrôdando.
O apelido pegou e ficou. Se o nosso João Aloísio lecionasse numa escola da zona de colonização alemã – de onde ele próprio era originário -, não sofreria essa traiçoeira punhalada, mas na Princesa do Sul, terra de corneteiros e gozadores impiedosos…
A fila indiana
Duas vezes por dia, no começo da manhã e após o recreio, formávamos filas no imenso saguão térreo. Cada turma dividia-se em duas fileiras. Um bedel berrava o ano e a letra da turma:
– Primeira série A!
E nós, em fila indiana, marchávamos em silêncio em direção à escadaria que nos levava às salas de aula, todas no segundo piso.
Pois bem, nesse segundo andar, num determinado dia da semana, numa determinada hora, quando passávamos por uma determinada sala, sempre víamos o professor João Aloísio de pé ao lado da mesa, imenso, sorrindo zombeteiro, esfregando uma mão na outra, à espera de suas cobaias… quero dizer, de seus pupilos. Tendo decorado o dia da semana e a hora, um péssimo elemento da nossa turma – praticamente um fora-da-lei – resolveu apresentar um quadrinho, ou seja, uma safadeza. Certa manhã, quando passava pela porta aberta da sala onde se encontrava o notável educador, ele berrou:
– Caroça!
Bah! O mestre virou-se instantaneamente e viu a fuça do guri que, naquele instante, passava pela porta. Numa velocidade inconcebível para pessoa tão corpulenta, correu até o corredor e lá pegou o presumido infrator pelo braço. Ocorre, porém, que aquele não era o praticante do crime. Não! Aquele era simplesmente o azarado. O mequetrefe que gritara estava justamente na frente dele.
Pelo que me recordo, esse pobre inocente foi considerado culpado e devidamente punido. Os poucos que assistiram ao drama – eu entre eles – não abriram a boca para dizer a verdade. Por quê? Simplesmente porque o criminoso era dos mais robustos da sala e por ali ninguém fazia questão de arriscar os dentes da frente ou a integridade do nariz.
A menor unidade explosiva
Certo dia, não sei por que motivo, entramos em sala antes do mestre João Aloísio. Havia então na nossa turma um meliante-chefe, um múltiplo repetente. Com base nele, inventei em A guerra do lanche um ladrão de merenda chamado Cláudio Aquino e dei a ele um perfil rigorosamente equino. Pois bem, era época de festas juninas e o tal bandoleiro estava na posse de algumas dezenas de estalinhos.
Estalinhos eram a menor unidade explosiva de que dispúnhamos naqueles dias. Eram bombinhas ínfimas que explodiam quando jogadas com força contra o chão ou quando alguém pisava sobre elas. O facínora foi então até a mesa do pedagogo e espalhou incontáveis estalinhos por ali. Ao redor da mesa, embaixo dela e, para culminar, sob os pés da cadeira professoral.
A explosão final
Lá pelas tantas chega o mestre, afobado, bochechas rubras, resfolegante. Entrou sorrindo encabulado porque chegar atrasado para ele era certamente uma agonia. Sintetizando: entrou flechado e pisando forte. Aí, claro, caiu na armadilha. De repente, ele se viu saudado por uma recepção militar, guerreira. Um por um, esmagados pelos seus sapatos 44, os estalinhos foram eclodindo:
– Bum! Bum! Bum!
No primeiro momento, o querido pedagogo levou um baita susto. Chegou a dar três ou quatro pulinhos cautelosos, preventivos, proeza bastante difícil para alguém tão volumoso.
Mas logo reassumiu o controle dos nervos e deixou aflorar o seu invariável sorriso brincalhão, dando uma mostra clara de que havia se divertido com a patifaria.
Aliás, homem extremamente rigoroso, talvez até considerasse aquela artilharia um justo castigo para um didata que entrava atrasado em sala.
Aí ele disse: – Moços, vocês deveriam guardar seu dinheiro para comprar coisas mais úteis.
Jogou a pasta sobre a mesa e depositou confiante seus 120 quilos na cadeira. Veio então il gran finale, o final estrondoso, a explosão conjunta dos muitos estalinhos que o flibusteiro havia colocado sob os pés da cadeira.
– BUM!