A MISTERIOSA MORTE DE MIGUELA DE ALCAZAR – 2

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A MISTERIOSA MORTE DE MIGUELA DE ALCAZAR

Lourenço Cazarré e Pedro Almeida Vieira

4. O valor jornalístico de uma cabeça humana numa carrocinha de pipoca

Um loiro aproximou-se de mim. Não era muito alto, mas era mais largo que porta de igreja.

– Tu és gaúcho, tchê? – perguntou-me.

– Como descobriste? Pelas impressões digitais?

– Pelo sotaque – respondeu, sério. – Eu vinha no ônibus de Taguatinga. Queres o meu depoimento?

Abri o caderninho e ordenei:

– Desembucha!

– Bah, o motorista tava num porronaço que dava gosto. Dirigia se cagando de rir. Gargalhou de Taguatinga até aqui. Ria que se mijava. Não adiantava nem apertar a campainha que ele não parava. Não recolheu nem velha em cadeira de rodas. Se veio direto, desembestado. Mas era um vivente bom de braço! Não fez nenhuma barbeiragem até o momento de meter o pé no freio. Aí, falhou. Então, se estrepemos todos. Blam!

Anotei tudo, ipsis literis. Gaúchos são bons contadores de histórias. Em geral excessivamente enfáticos, porém bastante sintéticos.

Bati no ombro do alemão e agradeci:

– Obrigado, patrício!

O depoimento daquele colono, vertido em língua de gente, brilharia na edição do dia seguinte do Correio de Brasília, onde eu exercia meu ofício.

Guardei o caderninho no bolso e fiquei observando o trabalho do fotógrafo do jornal. O galalau de dois metros de altura babava de felicidade ao fotografar o cenário da tragédia. Exultava, o insano. Acho que um jornalista precisa ser comedido, ter noção de limite. Uma alegria discreta era mais do que suficiente naquele caso.

Por fim, ele veio até onde eu me encontrava:

– A primeira página tá garantida, mano. Isso aqui parece balcão de padaria: tá cheio de presunto.

– Avisa no jornal que vou até o Hospital de Base – eu disse a ele. – Vou apanhar a relação dos mortos.

Ele me puxou pelo braço:

– Mano, você viu aquela cabeça que saltou pra dentro da carrocinha de pipoca? Fotografei. Será que vão ter coragem de publicar na capa?

Não respondi porque estava sem revólver. A minha vontade era escrever um ponto final na testa dele. Ponto de chumbo. O cara, além de fotógrafo, era paulista. Vê se pode, meu!

5. Um homem sensível diante de uma chuva injusta

Pouco antes das duas da tarde, entreguei ao editor-chefe a reportagem sobre o acidente. O meu texto não é lá um primor, reconheço, mas possuo a mais valorizada qualidade de um jornalista: escrevo depressa. Escrevo como falo e falo como camelô. Minha garganta é azeitada, meus dedos também.

Antes de ler o texto, como eu tinha previsto, o indivíduo me deu uns coices:

– A sua mãe morreu, gaúcho?

– Que eu saiba, ainda não, chefe.

– Então, por que você faltou à reunião de pauta?

– Por causa do morticínio na rodoviária. Considerei que ele, além de garantir a manchete de amanhã, justificaria a minha ausência.

– Reunião de pauta, gaúcho, é coisa sagrada. Eu sei que nela nunca se decide nada de importante. Sei também que tudo o que planejamos de manhã acaba sendo alterado ao fim do dia porque a realidade nunca corresponde ao que nós, jornalistas, esperamos dela. Mas, mesmo assim, não se pode faltar impunemente a uma reunião. Vou ler com cuidado o que você escreveu. Duvido que essa reportagem me impeça de puni-lo severamente.

Aristides Medalha, meu chefe, é mais conhecido como Medalhão. Características físicas notáveis garantiram-lhe o apelido: ele é realmente grande, pesa mais de cento e dez quilos, e tem a caraça totalmente rubra, devido a um passado e um presente de excessos alcoólicos.

O pobre homem é casado com uma mulher bastante feia. O nariz dela, imenso, é o centro de tudo. Dele partem feixes de rugas que correm em todas as direções. E reúnem-se, depois, creio eu, num ponto qualquer lá atrás, na nuca, da referida senhora. Não, a definição não ficou boa. Digamos que tudo o que havia de carne no rosto dela foi, certo dia, sugado. Depois, numa borracharia, injetaram-lhe um jato de ar na caveira. E tornaram a esvaziá-la.

Isso não é tudo, Medalhão tem cinco filhas, muito parecidas com a mãe.

O Medalhão poderia ser católico, espírita ou budista. Mas ele não aprecia religiões tradicionais. Integra os quadros do Evangelho Milagroso dos Dias que Antecedem o Apocalipse, seita fundada no Piauí, por um antigo sargento da Polícia Militar de Pernambuco.

Enquanto Medalhão lia minha reportagem, fui à lanchonete do jornal, onde, só mediante muita insistência chorosa, consegui descolar um pastel fiado. Que empurrei goela abaixo com o auxílio de um copo de água da bica. Tristonho, meditabundo, eu mastigava com os olhos pousados no gramado verdejante. Lamentei não ser herbívoro naquele momento.

De repente, me senti intimamente tocado pela chuva que caía no pátio. Sou meio poeta, um cara sensível. Comoveu-me aquele aguaceiro generoso que lavava, graciosamente, a numerosa frota de carros do jornal. Não! A natureza não é justa, socialmente falando. Aquela chuvarada, por exemplo. Para ser justa, ela deveria cair sobre apenas um carro de cada proprietário. Lavaria o “Revolução de Maio” e também um carro do patrão. A frota toda, não!

Voltei à redação, onde meu exercício filosófico-político foi cortado pela voz de taquara rachada do Medalhão:

– Considerando que é da sua lavra, até que essa reportagem está razoável, gaúcho. Estaria melhor se você não tivesse escrito perigosamente com zê.

Esse é o tipo de piada que ele prefere. Sem graça. Na verdade, de início, eu havia escrito perigosamente com z, mas tinha corrigido a tempo.

Resolvi levar na brincadeira:

– Considerando o que me pagam aqui, pode-se até dizer que a reportagem está excelente. Salário não é uma palavra que descreva adequadamente a merreca que recebo em paga pelo meu suor.

– Pare com o cinismo! – gritou Medalhão, que adora fazer shows no meio da redação. – Não ganho o suficiente pra aturar piadinhas de sulistas analfabetos!

Imediatamente depois, com ar cúmplice e em voz baixa, me disse:

– Esqueça essa materinha vagabunda porque tenho um trabalho fantástico pra você! É uma reportagem que vai lhe garantir um lugar destacado na história do jornalismo de Brasília.

Senti que ia embarcar em uma fria. Toda vez que Medalhão vem com esse papo de reportagens sensacionais, eu danço. Uma vez ele me obrigou a redigir a notícia da morte de um cara que morreu engasgado com um gomo de bergamota.

– Está bem, chefe, aceito a tal reportagem – aquiesci. – Mas só amanhã. Preciso passar o resto do dia vomitando por causa do que vi na rodoviária.

– Nada disso! Jornalistas são como almas penadas: nunca têm descanso. Você vai partir em cinco minutos, assim que eu lhe passar informações sobre o maravilhoso evento que começará daqui a pouco.

6. O risco de giz que nos separa da chamada anormalidade

Todos sabem que os editores de jornal são pessoas particularmente desequilibradas, mas a maioria ignora que eles estão sempre mais enlouquecidos nas segundas-feiras. Afinal, foram obrigados a passar o final de semana em casa, sem ter por perto subordinados aos quais pudessem humilhar.

– O trabalho que estou passando pra você, gaúcho, é tão importante que a pessoa mais indicada pra executá-lo seria eu, eu mesmo, Medalhão, o cão farejador, o craque da reportagem policial carioca nos anos cinquenta.

Além da mulher e das filhas horrendas, Medalhão tinha um forte motivo para estar agitado naquela segunda-feira: o dia anterior. Todo domingo é particularmente duro para ele. Das sete da manhã às sete da noite, ele permanece de pé e de braços abertos na “catedral” do Evangelho Milagroso, em Ceilândia Norte, cantando e pedindo a Deus a antecipação do juízo final.

– Cobrir esse acontecimento é tarefa pra um profissional que tenha intimidade com a gramática e que seja versado em literatura policial.

– Fala logo, chefe. Qual é o parangolé?

– Hoje, pela manhã, recebi um telefonema de um dos meus informantes. Um ínclito cidadão estrangeiro. Fonte jornalística altamente confiável. Ele me informou que, daqui a muito pouco, exatamente às três da tarde, começará no Imperial Hotel da República o Primeiro Congresso Internacional dos Escritores de Histórias Policiais.

– Chefe, vossa excelência está a fim de gozar da minha cara?

– Não se trata de gozação! Brasília vai mesmo sediar um congresso que reunirá os maiores escritores de livros de suspense do mundo. Sim, gaúcho, o maior evento literário deste ano, no planeta Terra, será realizado aqui na modesta Brasília diante dos nossos focinhos! E tem um detalhe sórdido: o único jornal presente será o nosso Correio de Brasília.

– Ora, se um congresso desses tivesse que ser realizado no Brasil, é claro que seria no Rio de Janeiro ou em São Paulo. Lá, tendo sorte, os participantes poderiam ser assaltados por pivetes, sequestrados, atingidos por balas perdidas ou fuzilados em uma chacina. Lá teriam, em suma, matéria-prima pra escrever um livro depois. Em Brasília, não. Isto aqui é um marasmo.

– Deixe de ser despeitado, Campestre – Medalhão só usa meu nome quando está furioso. – Você fala mal do Rio de Janeiro e de São Paulo por causa do complexo de inferioridade dos gaúchos. Mas não se pode esperar boa coisa de alguém nasce em um estado onde o crime mais praticado se chama abigeato.

Pausa. Vá ao dicionário, leitor! Procure por lá as palavras abigeato e abigeatário.

Achou? Pois bem, voltemos ao nosso romance.

Além de todos os fatores negativos que aqui já alinhei, Medalhão nasceu no Rio de Janeiro. Digamos que ele é bairrista. Para ele, na América Latina só tem uma grande cidade. Buenos Aires? Decadente. Cidade do México? Sujinha. São Paulo? Feiosa.

– O seu informante, chefe, estava bebum – insisti. – Estava mamado, borracho, entropigaitado.

– Não venha com esse desprezível dialeto espanholado pra cima de mim! Minha fonte é confiável. Na verdade, o congresso será realizado aqui porque escritores de histórias policiais só gostam de violência no papel. Mas chega de conversa mole! Você vai daqui direto ao Imperial Hotel da República. Lá, procure o gerente, o senhor Manoel Joaquim Batota. Ele tem todos os detalhes do Congresso. Respeite-o! É um cidadão português, muito culto, versado em Camões.

– Escritores policiais em Brasília, essa é boa! – resmunguei.

– Leve o gravador e algumas fitas. Grave tudo o que for dito por lá. Será um evento histórico. Mas cuidado: esse gravador custou uma fortuna! Se voltar sem ele, tomo seu fusca. E você ainda sai ganhando.

– Que fotógrafo irá comigo?

– Hoje, nenhum. Só a partir de amanhã poderemos enviar um retratista… Mas preste bem atenção, centauro! Se você, apesar de sua quase invencível burrice, conseguir escrever algo aceitável, eu posso lhe conseguir duas páginas… Agora, suma!

Medalhão virou-se de costas para mim e apanhou a Bíblia que mantém em cima da mesa. Toda vez que bate boca comigo ele precisa ler uns versículos do Eclesiastes para se acalmar.

Ao deixar o prédio do jornal, eu meditava sobre a loucura.

Teria Medalhão, como tantos outros editores-chefe antes dele, ultrapassado a tênue marca de giz que nos mantém presos na chamada normalidade?

Seria lunático também o português que lhe impingira aquela lengalenga de Primeiro Congresso Internacional de Escritores de Histórias Policiais?

Não! O mais provável é que o tal lusitano fosse um piadista, um zombeteiro, um brincalhão!

Pois bem. Num jornal você pode tudo: mentir descaradamente, vitaminar os fatos ou embelezar a realidade. Só não pode desobedecer a uma ordem, mesmo que estúpida. Por isso, eu deveria seguir para o Imperial Hotel da Republica. Lá, na certa, eu constataria que tudo não passava de um trote aplicado em cima do meu ingênuo chefe. Entrei no “Revolução de Maio” e saí atropelando as gotas de chuva.

*Jornalista e escritor.