A MISTERIOSA MORTE DE MIGUELA DE ALCAZAR
Lourenço Cazarré e Pedro Almeida Vieira*
52. Americanos não crêem na existência de outros países
A voz metálica de Dax estalou no outro lado da mesa:
– E dos meus livros, castelhano, tu não tens nada a dizer? Tu também achas que a velha cucaracha imitou meus best sellers?
– Imitou, sim, mas só no desprezo pela geografia.
Rimos todos. É sempre bom debochar da cara de um americano.
Águeda Christine agitou os anéis como uma serpente sacudiria seu chocalho e comentou:
– Rir dos americanos é o único prazer que eles ainda não nos confiscaram. Eles destruíram a música com a invenção do roque e arrebentaram o cinema com seus filmes estúpidos.
Quando a gorgolejante gargalhada geral definhou, Bugres retomou o hipotético microfone:
– Em certo trecho da primeira edição de O touro maltês, Juanito Saavedra cruza a fronteira entre Bolívia e Colômbia. Pensei que se tratava de uma brincadeirinha maldosa de Miguela, que odiava os países latino-americanos, mas, não, era burrice geográfica mesmo.
Fez uma breve pausa e acrescentou:
– Já o detetive Sem Spada, criado pelo senhor Dax, fez uma proeza ainda mais notável. No livro Não abra a porta nem para o carteiro ele atravessa, caminhando, a fronteira entre Venezuela e Uruguai…
– Leitores americanos cagam e andam para a geografia mundial – retrucou Dax. – Aliás, nem acreditam que existam na Terra outros países, além dos Estados Unidos. E, aliás, pensam que a América Latina é apenas uma invenção de agentes turísticos vigaristas.
O argentino voltou ao ataque:
– Já que estamos frente a frente, senhor Dax Chamber, aproveito para saciar uma velha curiosidade que tenho a respeito de seu detetive. Por que Sem Spada só se fere de raspão nos muitos tiroteios em que se mete? Por que nunca tomou um tiro, por exemplo, nas chamadas partes pudendas?
A face de Dax Chamber subia rapidamente pela escala das cores: rósea, carmim, carmesim, solferina, encarnada, vermelha e roxa. Estava a ferver de raiva o filho da nação dos bravos e fortes.
– Espanta-me – prosseguiu o argentino – que Sem Spada, vença todas as lutas com um só soco. O senhor Dax nunca assistiu a uma luta de boxe? Às vezes, os idiotas se esmurram durante meia hora e ao fim ainda saem caminhando com as próprias patas.
53. Palavras costumam dançar de braços dados
Houve um novo e mais demorado surto de gargalhadas.
Águeda Christine, com falta de ar de tanto rir, perdida sua compostura britânica, abanava-se com um prato sujo.
E Bugres prosseguiu, sempre cruel:
– Impressiona-me ainda mais o fato de Sem Spada jamais encarar as cantadas que recebe das loiras. Por que o senhor o chama de durão, se ele se acovarda diante de um decote? Durão, onde? No queixo que ele oferece com volúpia aos punhos dos bandidos?
Esticada na cadeira, quase caindo de costas, sacudida pelo ruidoso riso russo, Fedorova tremia dos pés à testa.
Venenoso, avançou o vate de Buenos Aires:
– Perdoe-me, senhor Dax, mas, olhado pela ótica estreita do nosso machismo latino, o seu bravo Sem Spada não passa de uma bichinha masô.
As gargalhadas tornaram-se quase histéricas.
– Meus livros têm diálogos divertidos e muita ação – retrucou Dax Chamber. – Tiros, socos, corrida de carros e, às vezes, um enterro. Leitores americanos odeiam frases longas e palavras com quatro sílabas. É por isso que, em nosso país, os livros do senhor Bugres só são vendidos nos balaios de ofertas.
O escritor argentino, que naquele dia estava com a macaca, contra-atacou:
– Por falar em dinheiro, senhor Dax, confesso que me comove a honestidade do seu herói. Por que tendo chances sucessivas de ficar milionário, Sem Spada só recebe o que foi acertado com o cliente? Ele foi escoteiro na infância?
Entendi a renovada explosão de gargalhadas, que veio a seguir, como uma pequena vingança dos leitores de todo mundo que não suportam mais tantos heroicos policiais americanos, incorruptíveis, solitários e durões.
– Os americanos pagam para que lhes contem histórias – defendeu-se Dax Chamber. – Se as histórias forem edificantes, melhor. Sentem que ganharam duas coisas pelo preço de uma. Americanos acreditam na eterna luta entre o bem e o mal e não se pode fazer nada a respeito. Por isso, tenho de dar aos meus leitores um sujeito que derrota os bandidos. Se esse sujeito for honesto, melhor.
– Mas onde fica o prazer da leitura? – indagou o poeta argentino, francamente indignado.
– Somos puritanos, odiamos a palavra prazer – respondeu o americano. – Ninguém nos Estados Unidos lê por prazer. As pessoas lêem para aprender alguma coisa. Querem, pelo menos, ganhar uma frase engraçada para usar na lanchonete, entre uma dentada e outra no hambúrguer de um quilo. Os gregos inventaram a pederastia; os romanos, os impostos; nós criamos a obesidade.
– Basta! – berrou Aroeira, ao mesmo tempo em que voltava a se sentar. – Estamos aqui reunidos para investigar um assassinato e não para assistir a um torneio de piadinhas desgraciosas.
– Perdoe-me se divago, delegado – disse Bugres. – Mas aqui no Brasil uma palavra puxa outra e, aí, de braços dados, sambando, elas vão formando um animado cordão que se perde na carnavalesca multidão.
– Que raios! – disse, em voz alta, um sorridente Batota. – O senhor Bugres é mesmo um pândego!
Voltei-me para o português. Demorei a entender por que seu rosto estava duplicado. Esquecera-me que eu havia bebido muito uísque. Eu ainda escutava bem, mas minha visão estava comprometida.
– Todos os livros se assemelham – filosofou Bugres. – Mas os livros policiais são ainda mais parecidos entre eles do que os demais.
O americano voltou a falar:
– Novelas policiais têm início, meio e fim, alinhavados por um enredo verossímil. Não aceitam malabarismos ou fricotes literários. Apenas contam uma boa história. Se possível, de modo cativante. É isso que modestamente faço.
54. A fascinante e obscena arte da delação
Sobreveio um silêncio pesado que eu aproveitei para trocar, com bastante dificuldade, a fita do gravador.
Sentados, pensativos, com gestos lentos e pesados os escritores cuidavam de reabastecer seus copos. Pareceu-me que tentavam sair do pântano de baboseiras literárias em que os afundara o poeta argentino.
Fedorova segurou o balde de prata com as duas mãos e bebeu sofregamente a água que resultara do derretimento do gelo durante aquela demorada discussão.
Tomei um gole de uísque sem gelo e foi como se engolisse uma acha de lenha, incandescente.
Peguei minha caderneta e escrevi: “O mundo soltou-se das amarras e está flutuando em pleno ar. Os rostos dos escritores são como balões de festa de aniversário que dançam em uma brisa ligeira, mas eu vejo rugas de preocupação em todos esses rostos/balões. O delegado Aroeira diverte-se. Neste momento, parece feliz com o incômodo silêncio que se instalou nesta sala. Talvez esse silêncio faça parte de sua técnica investigativa. Os olhos do delegado Aroeira vão de um escritor a escritor à procura do mais vulnerável entre eles”.
Ergui os olhos ao escutar um rumoroso e demorado pigarro.
O tal pigarro pertencia ao delegado Aroeira, que voltou a discursar:
– Estou acostumado a interrogatórios, mas até hoje não participei de outro tão interessante quanto este. Aqui, temos comida e bebida à vontade. Em geral, na delegacia, deixo meus interrogados à míngua. Não dou a eles nem pão nem água. Aqui, hoje, reina um clima de cordialidade. Ainda não se ouviu, por exemplo, o estrondo de um tabefe. E eu ainda não soltei um palavrão cabeludo. Cabe uma pergunta: por quanto tempo eu me manterei, aqui, hoje, gentil e cordato?
Todos ali conheciam suficientemente a língua portuguesa para perceber a ameaça embutida naquela última frase.
Bruscamente, Aroeira voltou-se para mim e me interpelou em voz alta:
– Gaúcho, é verdade que você gravou tudo o que foi dito aqui hoje?
Embora quase batendo com a testa na mesa, concordei com um gesto de cabeça. E, com um dedo incerto, apontei para o gravador que estava à minha frente, ligado.
– Muito cuidado com este gravador, gaúcho – continuou o policial. – As fitas por ele gravadas serão fundamentais para a minha investigação. Digo mais: por causa delas, você certamente se transformará no alvo preferencial de um provável segundo assassinato.
Inundado pelo uísque, eu não tinha condições de avaliar o risco que corria. Mesmo assim, com uma piscada de olhos, naquele momento estrábicos, voltei a concordar com o policial.
Aroeira continuou:
– Então, gauchinho, antes que esses camaradas almocem você, faça com que eles sejam o meu jantar. Denuncie-os.
Lutei bravamente contra a quase impossibilidade de mover minha mandíbula, mas acabei saindo vencedor:
– Não percebo exatamente onde o senhor deseja chegar, delegado – falei, com voz pastosa.
– É simples: dedure os escritores. Conte-me o que eles falaram de comprometedor. Eu levaria muito tempo para ouvir as fitas do seu gravador. Mas você é um jornalista e todos os que exercem esse ofício estão sempre atentos aos deslizes dos outros. Para, é claro, melhor poder destruí-los ou difamá-los depois. Você também deve ter registrado muita coisa interessante com esta sua caneta perversa. Vamos, meu filho, exerça agora a obscena e fascinante arte da delação.
55. O duro tratamento dado aos safados na Rússia
Naquele momento, a cabeça de Aroeira encolheu e se transformou rapidamente num focinho de cobra venenosa. Uma naja, digamos. Creio que ter visto até mesmo uma bifurcação na ponta da língua dele.
Mastigando lenta e dificultosamente as palavras, consegui elaborar uma pergunta:
– Se estou entendendo bem, o senhor delegado quer que eu banque o alcaguete, o dedo-duro, o informante…
– Não exatamente, gaúcho. Encare a questão por outro ângulo. O que eu estou pedindo a você é que aja como um patriota. Ajude uma autoridade constituída de seu país, no caso eu, apontando as frases mais comprometedoras desses estrangeiros suspeitos.
– Compreendo, doutor Aroeira. Isso talvez seja possível, posto que, durante toda a tarde, mantive o gravador ligado. Assim, registrei tudo o que aqui se falou. E, antes da chegada deste belo carrinho com tantas garrafas desencaminhadoras, eu escutei as fitas já gravadas e rabisquei na minha caderneta as frases mais interessantes. Jornalisticamente falando, é claro…
– Ótimo. Me fale dessas frases. Você é um garoto espertinho. Se me ajudar nessa investigação, terá depois informações privilegiadas, de primeira mão, sobre assassinatos e atropelamentos de gente famosa aqui em Brasília.
– Também estou disposto a ajudar a Justiça brasileira – intrometeu-se o Batota. – Como tenho uma memória implacável, confirmarei as frases verdadeiras do jornalista e impugnarei as falsas.
Entusiasmado, Aroeira esfregou as mãos:
– O mundo lusitano se une diante do avanço dos godos e visigodos! Vamos, filhote de abigeatário, consulte sua cadernetinha!
Senti que chegara um momento importante da minha vida. Ali estava a ocasião para demonstrar aos mais famosos escritores do mundo que eu não nada ficava a dever a eles. Não, eu não era apenas um simples jornalistazinho!
Como precisava estar calmo para desfilar diante deles o meu cérebro atilado e a minha fina argúcia, respirei profundamente antes de falar:
– Na verdade, delegado, fui muito além de simplesmente anotar frases. Eu elaborei uma escala de suspeição. Alinhei, por ordem decrescente, os nomes daqueles que me pareceram os maiores suspeitos.
Aroeira bateu palmas entusiasmadas, embora seu rosto estivesse retorcido por um esgar galhofeiro:
– Excelente! Mas em que critério se baseou você, Campestre, para criar tal lista?
– A pontuação variou em função do número de frases comprometedoras. Quanto mais frases equívocas ou inquietantes, mais pontos negativos ganhava o seu autor.
– Estupendo! E quem seria o suspeito número um nessa sua lista?
Antes de responder, mais vez enchi lentamente a caixa torácica, tanto para obter um pouco de ar quanto para reunir de coragem:
– Dona Fedorova Smerdlova Dornascostasviskáya.
Como já esperava uma reação forte, consegui abaixar a cabeça uma fração de segundo antes da passagem de uma garrafa voadora de rum, cheia até a tampa, lançada contra mim com força e destreza pela escritora eslava, que me interrogou aos berros:
– Você sabe o que a polícia faz com jornalista xibungo como você na Rússia? Tira a roupa do safado e manda ele correr pelas ruas nevadas até que o pinto dele fique do tamanho exato do seu dedo mindinho. Se ainda ficar maior, corta o excesso.
– Controle-se, dona Fedorova! – ordenou Aroeira. – Enquanto depõe, o jornalista está sob minha proteção. Depois, se quiser, a senhora poderá colocar em prática nele o tal método cirúrgico soviético, embora seja difícil achar neve por aqui. Continue, bisneto de Simões Lopes!
*Jornalista e escritor.