A MISTERIOSA MORTE DE MIGUELA DE ALCAZAR – 10

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A MISTERIOSA MORTE DE MIGUELA DE ALCAZAR

Lourenço Cazarré e Pedro Almeida Vieira*

 

  1. A profunda afeição dos russos pelos frascos

De acordo com a ordem estabelecida no sorteio, Fedorova foi a segunda a investigar o apartamento de dona Miguela.

A russa já entrou nele debulhando-se em lágrimas. Chorava aos berros, lacrimejava aos jarros.

A chuva lacrimal era ruim para a – perdoem o cacófato! – estética dela. O riacho de lágrimas atravessava as cavernas de rímel dos olhos e corria desembestado pela planície carmim das bochechas.

Logo surgiram duas manchas irregulares, puxando para o marrom, nas laterais do rosto da escritora eslava. As manchas nasciam afastadas, uma de cada olho, mas juntavam-se embaixo do queixo largo e, depois, pingavam da papada flácida para o chão.

Segurando na mão direita a garrafa de pinga que recebera do garçom míope, e tendo ainda encalacrado entre os beiços um toco do formidável charuto, a camarada soviética rugia:

– Oh, minha pequenina Mika da muléstia, por que os deuses dos infernos vieram até este país carnavalesco pra te arrebatar de nós, teus pares? Por que os céus determinaram tua morte justo hoje quando nos encontramos reunidos em torno do ardente samovar da literatura?

Eu bebia com interesse o que dizia ela no seu arrastado e fanhoso sotaque cearense, mas me perguntava: para que todo esse show?

Como eu sabia que Fedorova e Miguela não se amavam tanto assim, conclui que aquela performance decorria da excessiva ingestão de sumo de cana.

Depois de ajoelhar-se diante do corpo de Miguela, Fedorova soltou a garrafa no carpete, levou as mãos aos cabelos e se pôs a puxá-los. Arrancou uns bons chumaços.

Além dos gritos, lágrimas e extração capilar, de vez em quando ela dava murros no próprio peito. E, como pessoa possuída por espírito ruim, perorava entre baforadas:

– Embora tenhas nascido no berço de ouro da burguesia exploradora, eu sei que tu, Mikhaila da peste, amavas os mujiques do teu país! Tua morte é uma grande perda para a literatura do crime!

Não demorei a perceber que, apesar da autoflagelação cenográfica, a russa observava atentamente o cenário. Seus rasgados olhos cinzentos corriam pelo rosto da morta, pela sua roupa e arrastavam-se pelo chão ao redor do cadáver.

De repente, me deu um estalo. Fedorova estava reproduzindo diante de nós trechos do célebre monólogo do arrependimento tardio de Raspadecova, a criminosa de Contravenção e penalidade. Sim, porque depois de matar a velha usurária, Raspadecova fala dela com muito carinho. Afinal, a megera está morta. E a morte, na Rússia, como no mundo todo, redime as pessoas. Lá como cá, todo canalha em vida vira gente boa quando veste o paletó de madeira.

Sempre chorando, a novelista eslava levantou-se. Pegou o cinzeiro, mas não bateu nele o charuto para livrá-lo da cinza. Não! O que fez foi aproximar dele o seu monumental narigão para farejar resquícios de tabaco.

A seguir, agachou-se e examinou demoradamente embaixo da cama. Depois passou aos armários, cujas portas escancarou, sempre discursando em voz alta:

– Vejam, amarelos, como Mikhaila mantinha em ordem o danado do seu apartamento! Sua mala está aqui dentro, fechada. E parece que ninguém forçou a fechadura. De que morreu, ó deuses, a doce Mikólia?

– Como sofre esta pobre rapariga! – sussurrou-me Batota, de olhos marejados. – A senhora Fedorova é realmente uma alma sensível, é um ser mais humano.

– Todas as pessoas são igualmente humanas – contestei. – Mas não se emocione com a encenação, seu Manoel. Sem drama, a vida não tem graça para os russos. Na verdade, creio que ela já está rabiscando mentalmente o livro que escreverá depois sobre o assunto. Essa choradeira toda certamente será incorporada ao texto.

– Como podes estar a ser tão cínico, meu pelintra? Estamos a presenciar aqui o mais comovente sofrimento, derivado de sincera admiração e companheirismo, e tu vens falar-me de encenação…

 

  1. Livre dos padecimentos e turbações da terra

A nossa discussão, entre mim e o português, ou entre eu e o português – nem sei como escrever, maldita língua! -, foi interrompida por novas e interessantes frases pronunciadas pela escritora de São Petersburgo:

– Para onde terão ido as pequeninas garrafas de uísque que deveriam estar em cima da tua geladeirinha, Mikahilichenka? Teriam sido roubadas pelos cossacos ou pelo tártaros?

– Viu como nada lhe escapa? – sussurrei ao português. – Ela já descobriu que os agentes de Aroeira embolsaram as garrafinhas.

– Que monumental poder de percepção tem esta rapariga! – espantou-se Batota. – Como deu pela falta das miniaturas?

– Pelo faro – expliquei. – Russos sentem o cheiro de birita mesmo quando as garrafas estão muito bem arrolhadas.

– Pára de falar mal dos russos, primata! – sibilou Batota. – Lembra-te de Tolstói, Tchecov e Gógol!

– Gosto muito dos russos – confessei. – Aliás, Brasil e Rússia se parecem muito. São países enormes e igualmente atrasados. Lá como cá vigoram a mais desenfreada corrupção, a violência extrema e a miséria mais hedionda. Mas nós temos uma grande vantagem sobre os russos: a cachaça deixa o sujeito mais alegre enquanto a vodca inclina o seu bebedor mais à melancolia.

– Chega de baixa sociologia, pá! – impacientou-se o gerente do hotel. – Deixa-me degustar a alta qualidade literária das amargas lágrimas de Fedorova Smerdlova.

Então, como se estivesse esperando que nos calássemos, a robusta senhora eslava salmodiou:

– Oxente, a morte se encontra instalada no coração do regime capitalista. Será que Mikachenka se suicidou por ter entendido que o Ocidente está vertiginosamente descendo a ladeira dos valores humanos como um jegue sobrecarregado com odres de pinga?

Aquela fala foi demais para o emotivo Batota, que resolveu entrar no jogo cênico de Fedorova. Rosto lavado por lágrimas, o conterrâneo de Fernando Pessoa ajoelhou-se diante do cadáver de Miguela de Alcazar e, com a mão espalmada sobre o poderoso torso, recitou, em altos brados:

Alma minha gentil que te partiste,

Tão cedo desta vida, descontente

Repousa lá no céu eternamente 

E viva eu cá na terra sempre triste.

Fedorova voltou-se para Batota:

– Hoteleiro da muléstia, enquanto recitavas o lírico Camões, eu me vi transportada à Rússia milenar, onde florescem os girassóis! Senti que anjos me retiravam deste quarto, entre cujas paredes se aninhou a famélica e sedenta morte, e me conduziam por entre nuvens…

A mais contagiosa das doenças é um mal que não tem cura, mais conhecido como loucura. A desembestada maluquice da russa tinha despertado a dormente demência de Batota.

Tudo o que relato passou-se na minha frente. Era como se eu estivesse escrevendo um livro e, de repente, enlouquecidos, os personagens tivessem assumido o controle da narrativa.

Ou eu entrava no jogo deles, e me fazia de doido, ou dava-lhes um tranco para voltassem à chamada realidade palpável, essa coisa desprezível – odiada pela gente sofisticada e bem pensante – em que vivemos nós, os assalariados.

Optei por fazer-me de pirado:

– Por que choras, generosa Fedorova, se Mikhailuchenka já se encontra no vaporoso céu descansando dos padecimentos e turbações desta desolada terra?

– Não sofro só por Mikahila, muléqui. Choro também pela pobre alma da atormentada criatura que pode ter causado o falecimento da nossa companheira.

– Mas quem poderia ter causado, mesmo que sem querer, a morte da pobre Mikahila? – perguntei, intrigado.

– Arre égua, meu bichinho! Nós! Potencialmente, somos todos assassinos. O mal está encravado em nossas vísceras. Se baixamos a defesa por um segundo, o ódio transborda do nosso coração.

 

  1. O insuperável prazer de matar

– A senhora poderia explicar melhor esta sua última frase? – indaguei.

– Claro! De que nós, chamados civilizados, nos alimentamos? De morte. Só vivemos porque sacrificamos animais e vegetais.

– Vegetais?

– Por acaso um amarelo como tu acha menos bárbaro arrancar uma mandioca da terra do que degolar um bode?

– É uma tese insólita, mas interessante – admiti. – A senhora acha que a morte de dona Miguela foi natural?

Depois de emitir um formidável soluço, a russa falou com voz embargada:

– Olhe bem pra Mikuchina, cabra da peste! Ela era uma muié sabidamente elegante, mas está de mantilha. Ora, nem mesmo uma beata espanhola gostaria de morrer com uma porcaria dessas no quengo! Por causa dessa mantilha, sou tentada a dizer que a coitadinha teve morte fulminante.

– Mas a morte que a fulminou terá sido natural ou provocada? – insisti.

– Meu sensível coração russo me diz que a Mikahilachka foi assassinada. Por quê? Porque sinto que sua pobre alma ainda vaga pelos corredores desse hotel. A alma dos que morrem de causas naturais sobe direto ao céu.

– Como poderia alguém matá-la se ela estava num quarto fechado à chave? – perguntou Batota.

– Observei atentamente esta bosta de apartamento e não vi nem sinal da passagem de um assassino por aqui – disse a russa. – Por isso, conclui que a morte chegou aqui de maneira invisível.

– Invisível! – entusiasmou-se o português. – A senhora acredita em fantasmas, duendes, vampiros?

– Falo de substâncias invisíveis! Gases venenosos, por exemplo. Matar com gás é um verdadeiro esporte em meu país. No tenebroso inverno russo, esposas ciumentas e cornos revoltados se utilizam do sistema de aquecimento para se livrar de cônjuges safados.

– Mas o cheiro de gás não teria sido percebido pelas outras pessoas? – indaguei.

– A ciência é coisa do cão – rugiu a russa. – Já inventaram até um gás letal inodoro.

– E o motivo, dona Fedorova? – questionei. – O que teria levado alguém a matar dona Miguela?

– Oxente, quanta ignorança! Hoje em dia, mata-se mais sem motivo. Mata-se simplesmente pelo insuperável prazer de eliminar um ser humano. Mas, no caso de Mikahiloka, eu diria que vingança ou inveja movimentaram a mão do lazarento matador.

Fedorova levou a garrafa aos beiços e, de um só gole, sugou o que havia de cachaça dentro dela. Que não era pouca coisa. Depois de bater repetidamente no próprio peito, como Tarzan quando vê um cipó, ela se retirou do apartamento 1313, mas sempre chorando, soprando fétidas nuvens de tabaco e falando:

– Pobre Mikutinka! Oh, minha doce alma gêmea, quem saberia dizer por que teu livro O touro maltês tem tantos trechos que parecem copiados do meu Contravenção e penalidade? Se nossos livros são tão parecidos, por que o meu vendeu apenas sete milhões de exemplares enquanto o teu vendeu vinte milhões?

Batota e eu nos entreolhamos.

– Ouviu bem essas últimas frases? – murmurei no ouvido do português. – Esta senhora russa tem os dois motivos que ela mesma apresentou como prováveis para o assassinato: vingança pelo plágio de seu livro e inveja pela vendagem maior da espanhola.

Batota olhou-me espantado. Não compartilhava minhas suspeitas, mas certamente reconhecia o valor do meu argumento.

– Vou buscar agora a senhora Águeda Christine – retrucou-me, emburrado. – Espero que sejas mais respeitoso com ela, que não lhe faças tantas perguntas inoportunas e inconvenientes.

 

  1. Cadáveres apodrecem mais rápido dos trópicos

Quando Batota chegou à sala de reuniões, lady Águeda Christine informou a ele que Sim Et Non e ela haviam decidido investigar juntos o quarto de dona Miguela.

– Não imaginava que fossem tão amigos – comoveu-se o português.

– Não é o caso, moço – disse a escritora inglesa. – Na verdade, a gente se odeia. Não é Sim?

– Se odeia pra cacete – concordou o francês. – É ódio maior que o Maracanã.

– Se assim é, não entendo porque entram juntos – ponderou o gerente do hotel.

– As coisas mais interessantes são incompreensíveis – disse a escritora britânica. – Entrando juntos, teremos chances iguais na investigação. O mais inteligente encontrará as pistas mais consistentes.

– É isso aí, sangue bom – ajuntou Sim Et Non. – O derrotado terá três saídas: cortar os pulsos, atear fogo às vestes ou beber formicida.

– Deixe de ser aborrecido, bobinho – disse Águeda Christine. E, voltando-se para Batota, acrescentou: – Juntos, a gente se vigia mutuamente. Assim, posso evitar que o danadinho do Sim falsifique ou roube provas.

Como a frase surpreendeu o francês no início de uma funda baforada, ele não pode responder de imediato.

– Vamos logo ao 1313 – comandou Batota. – Não se sabe quanto tempo demorará a chegar o rabecão da Polícia.

– Se é que virá – comentou Sim Et Non. – Aliás, nos trópicos os cadáveres apodrecem rapidamente. Os políticos, também. A senhora sabe, lady Águeda, qual a diferença entre um político europeu e um latino-americano?

– Uai, nossos políticos roubam menos – respondeu a inglesa. – Cobram percentagens menores dos corruptores.

– Nada disso! – chiou o francês. – A diferença é que os europeus roubam para a caixinha do partido, enquanto os cucarachas roubam para eles próprios. Mas coincidem em um ponto: ambos depositam o dinheiro roubado na Suíça.

– Ocê tem razão, Sim. Esse trem da corrupção funciona desse jeitinho mesmo… Mas eu não sabia qu’ocê se interessava por política.

– Não me interesso por política, cacete! Eu me interesso por crime, o que vem a dar no mesmo.

Lado a lado, caminhavam a alta escritora inglesa e o francês baixote. Atrás deles, de gravador ligado e tomando notas frenéticas, seguia eu, ao lado de Batota.

– Também há uma grande diferença entre os escritores policiais ingleses e americanos – disse Sim Et Non. – Americanos gostam de crimes sangrentos e de detetives brutais. Já os britânicos preferem crimes intrincados e detetives cultos…

– Temos outra grande diferença dos americanos – acrescentou a escritora. – Escrevemos em inglês. Eles usam um dialeto, o cauboiês.

– Ingleses são razoáveis autores de novelas policiais – reconheceu o francês. – Pena que os crimes que inventam sejam tão rocambolescos que seus livros acabam parecendo bolos confeitados.

– Gosto demais da conta dos detetives franceses – sibilou lady Águeda. – Fico impressionada com os automóveis que eles usam. São carros que têm mais marchas à ré do que à frente: são melhores para os policiais gauleses fugirem mais depressa dos bandidos.

*Jornalista e escritor