MEMÓRIA DO TREZE HORAS: TESTEMUNHO DE UMA VIDA

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Fernando Lessa Freitas tinha 50 anos e eu 29 quando nos conhecemos. As lições recolhidas desse convívio, tantas, e tão ricas em conteúdo, expressavam gestos de lealdade, solidariedade na adversidade, profundo respeito ao deficiente físico, plena valorização do negro na sociedade, assistência ao desvalido, amor ao esporte, dedicação e paciência com a velhice,  ação permanente em favor da cultura e espírito inteiramente dedicado à comunidade.
Luís Fernando Lessa Freitas
18 anos depois
12/12/2002 – 12/12/2020
TESTEMUNHO DE UMA VIDA

Por Clayton Rocha

Recordar é a única maneira de deter o tempo.

Quando se tem uma só vontade, a de servir, alcança-se um patamar que é raro na vida de um homem. Luis Fernando Lessa Freitas era  escravo da memória de Pelotas,  tendo feito de sua vida um exemplo de solidariedade humana e de  devoção a esta freguesia de São Francisco de Paula, não por acaso identificada em seu brasão com a palavra “charitas”.

Precisei de um tempo para falar a respeito desse amigo do coração. Os recentes acontecimentos, entremeados de comemorações e de momentos de dor, enfraqueceram meu  ânimo  e entristeceram por demais todos os colaboradores de uma antiga mesa de debates. O amigo de uma vida que se vai, depois de ter brigado demoradamente com a doença, renegando-a, questionando-a  e desafiando-a num primeiro momento, preferiu, por último, morrer consciente  a viver enganado.

Eu o conheci, lá no outro século, através da Vera Guido  Satte Allam. O alicerce de pedra de nossa amizade resistiu ao tempo e aos desencontros e tornou-nos inseparáveis.Corremos mundo e lidamos com a notícia,  tendo sempre  Pelotas  como pano de fundo e razão de viver.

Fernando Lessa Freitas tinha 50 anos e eu 29 quando nos conhecemos. As lições recolhidas desse convívio, tantas, e tão ricas em conteúdo, expressavam gestos de lealdade, solidariedade na adversidade, profundo respeito ao deficiente físico, plena valorização do negro na sociedade, assistência ao desvalido, amor ao esporte, dedicação e paciência com a velhice,  ação permanente em favor da cultura e espírito inteiramente dedicado à comunidade.

Fernando Freitas vivia da leitura, era arguto observador do comportamento humano, e  por isso repassava boas lições. Viajava,  da poltrona de sua biblioteca, pelos espaços sem fim que podem ser visitados pela imaginação humana.

Vertical, leal, generoso, era um amigo que não fingia afetos. Repelia com veemência a dissimulação e a farsa, e abominava a ingratidão, que permanentemente se repete no coração humano.

Em seus  74 anos de vida, sempre teve consciência de que   o homem tinha o dever de saber conviver com suas loucuras e teimosias.  Não queria ser grande, apenas verdadeiro, rodeado de amigos, e senhor de seus atos. Figura chave em 24 anos de debates, o “ arquivo móvel” do Treze, como o identificávamos, não tinha dobradiças na espinha. Implacável na crítica,  era duro com o adversário. Usava, como ninguém, sua conhecida metralhadora giratória, e tocava fogo nas grandes rodas de conversa e de debates, especialmente contra os inertes e os  pobres de espírito.

Visitava  Cemitérios, ouvia clássicos,  enchia com a fumaça perfumada do seu cachimbo os ambientes que freqüentava, cuidava dos cegos,  era um pedaço vivo da Biblioteca Pública Pelotense, e vivia para os livros. Dos diversos instrumentos utilizados pelo homem, dizia, o mais espetacular era o livro. Para ele, os demais instrumentos eram extensões do seu corpo.  O microscópio, o telescópio são extensões de sua visão; o telefone é a extensão de sua voz;  o arado e a espada,  extensões de seu braço. O livro, porém, é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação. Isso é o livro. Isso é Jorge Luis Borges. Isso também é Fernando Lessa Freitas.

Lembro-me agora daquele cego que chorava,  durante a apresentação da Orquestra Sinfônica de Berlim, no Auditório do Sistema Berlim Livre de Rádio.  Foi em 1990, na reunificação da Alemanha.  Estávamos juntos, testemunhando felizes  aquele grande momento  da História. Eu ainda ouço sua voz, em tonalidade baixa, expressada de forma solene,  recordando o Padre Vieira, no instante em que estava inteiramente fixado naquele cego germânico: –  os olhos têm dois ofícios, ver e chorar. E mais parece que os criou Deus para chorar do que para ver,  pois os cegos não veem e choram.

Sei  que o Freitas  gostaria que eu escrevesse sobre ele como estou escrevendo:  com veracidade, dureza e admiração.  Espero ter retratado o que ele realmente foi.  Um homem justo, que se sentia responsável pela memória de  sua cidade.  Nós, do Treze Horas, haveremos de guardar os seus encantos, enquanto tentaremos esquecer o desencanto de  sua partida.

Sua poltrona não será ocupada por ninguém. Em posição de honra, sobre a mesa, em frente ao seu lugar cativo, haverá apenas uma foto. Nela, alguns amigos de sempre: ele e o seu cachimbo inconfundível, todos nós em momento de comunhão e alegria.

Por fim, que ele tenha cuidado. Porque, ao contrário do que pensava, há sonhos em seu sono. Que ele se esforce em compreender essa nova luz que o envolve.  Espero que ele vença sua velha impaciência. Para tanto, rogo a Deus que não lhe  seja proibido fumar no céu.