O Treze Horas relembra neste domingo Mozart Victor Russomano – nascido em Pelotas, em 5 de julho de 1922. Faria na próxima semana 98 anos. O Memória do Treze presta assim homenagem ao jurista, professor universitário jubilado das faculdades de direito da Universidade Federal de Pelotas e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, hoje integrada à UFPel. Também foi professor titular da Universidade de Brasília e doutor Honoris Causa da Universidade Católica de Pelotas. Russomano também foi ministro e presidente do TST – Tribunal Superior do Trabalho. Em 21 de junho de 2013, o Tribunal Regional do Trabalho da 11ª Região inaugurou oficialmente as novas instalações do Fórum Trabalhista de Manaus, o qual, em homenagem, leva o nome de Mozart Victor Russomano. Ele morreu em Pelotas, em 2010, aos 88 anos, era um amigo do Treze Horas, onde teve participações extraordinárias e que enriqueceram sobremaneira o programa da R.U. – O Memória do Treze Horas recupera um texto escrito pelo jornalista Clayton Rocha – A LUCIDEZ ADMIRÁVEL DO JURISTA.
Podcast produzido pelo jornalista Clayton Rocha
A LUCIDEZ ADMIRÁVEL DO JURISTA
Por Clayton Rocha
Mozart Victor Russomano faria neste 5 de julho 98 anos. Há dez anos atrás estava em Lisboa, escrevendo sobre ele. A lealdade aos amigos era o seu traço caracterizador. E a altivez, o seu estado de espírito. Mas já se mostrava completamente deslocado no século XXI. Brilhara intensamente no século XX, e dele sentia saudades. Lia todos os autores que fosse possível ler, e todos eles do século XIX. Fui merecedor de sua preciosa amizade durante mais de 35 anos. Quando escrevi sobre ele com 8 meses de atraso, pois só o tempo confere forças! E este é o presente que lhe ofereço.
Dezessete horas e trinta e cinco minutos. Dia 17 de outubro de 2010. Santa Casa de Misericórdia de Pelotas. Um quarto branco. Três imagens de São Judas Tadeu velam por ele. E ele se vai! Por conta de sua partida, uma página de ouro da alta cultura pelotense acaba ser ser virada. Por sorte, essa página, mais o livro inteiro, continuarão sendo folheados, na medida em que ele fica, nas bibliotecas e nas livrarias, nas lembranças e nas conversas de tantos, aqui e em muitos outros lugares,em grandes auditórios e em salas acanhadas, cujas plateias, de pé, tanto o aplaudiram.
Amava profundamente a sua terra, a ponto de dizer, com raro brilho poético: não me deixem o campo livre, não me deixem as rédeas soltas porque, no mesmo instante, eu estarei, a galope, trilhando a estrada de ouro que conduz à Cidade de Pelotas!
Tribuno consagrado, sua palavra era pedra preciosa muito bem lapidada, sempre envolta na arte da fina expressão, cheia de brilho e de elegância.
Ainda jovem, encantou Getúlio Vargas, depois Carlos Lacerda, Ildo Meneguetti, Jarbas Passarinho, José Sarney, Gilberto Amado, Rafael Caldera Presidente da Venezuela, e juristas do novo e do velho mundo. Recusou cargos e convites permanentes, porque o Direito do Trabalho, a sua Bíblia, vinha antes de tudo o mais. Escreveu até encher as prateleiras das bibliotecas, numa determinação incomum à causa que abraçara. Era um homem plenamente realizado.
Na última aparição pública, fora de Pelotas, usando uma gravata de seda pura, e feita à mão, que eu lhe trouxera de Milão, recebeu, num auditório lotado, ele honrado e sensibilizado, o segundo título de Doutor Honoris Causa concedido pela PUC de Porto Alegre nos últimos 60 anos.
Em sua doença, a palavra de ordem foi lucidez. Ele esteve inteiro. Maravilhosamente brilhante, a ponto de recitar, com voz pausada e bem pronunciada, juntamente com o advogado Gustavo Haical, a quem tanto apreciava, trechos da Divina Comédia de Dante Alighieri. Perspicaz, tudo percebia! Seu olhar falava por ele. Nos dias derradeiros, durante um aperto de mão, insistia comigo: eu não tenho mais nada a fazer aqui. Minha missão está cumprida. Digo-lhe isso porque você foi o grande amigo de minha velhice! Deixo-lhe os originais de meu último livro, “O Filho do Caseiro”, e faça deles o que você bem entender.
Aos mais íntimos, esses poucos que ficaram o tempo todo ao seu lado, disse que o calor humano fortalece o espírito de um Velho!
Dele, fui merecedor de toda sorte de gentilezas e de gestos de forte impacto, como este que aparto na memória, ocorrido no ano de 1989, para guardá-lo em espaço nobre de minhas melhores lembranças: escolha o que você quer fazer, quando e em que país, que o resto é comigo! Respondi em frase curta e direta: não quero nada, e quero tudo!
Não quero nada, em data nenhuma, em hora nenhuma, e em lugar nenhum, a não ser o privilégio de poder guardar um Gesto, na generosidade dessa sua oferta, vinda de Genebra, durante todas as horas e em todos os lugares por onde se desenrolar esta minha vida.
Parecia distante, dando a ideia de que circulava num outro patamar, superior, acima do cidadão comum e de todos os tormentos da existência. Mas não era bem assim. E que o digam seus íntimos, os que lhe serviram, cujas lágrimas expressaram a sinceridade e o reconhecimento à grandeza humana de um jurista admirável que jamais prejudicou quem quer que fosse e que sempre facilitou a ascensão de tantos.
Em claro sinal de despedida, alguns dias antes, ainda em casa, perguntou-me: Você lembra daquela famosa inscrição, atrás do pêndulo daquele velho relógio de parede? Assenti com a cabeça, em sinal afirmativo. (era a história que ele mesmo contava, segundo a qual um homem de avançada idade, e já doente, comprara um velho relógio num antiquário, e localizara depois, para espanto seu, uma pequena inscrição em bronze afixada bem atrás do pêndulo. Ela dizia: É mais tarde do que pensas!)
Em seus derradeiros dias de vida, continuou dando lições de firmeza de caráter e de compreensão diante do inevitável. Estou batendo em retirada, e sem munição, dizia, a cada novo amanhecer. Enfrentava as ações médicas com resignação e tolerância. Encerro esta minha vida com as minhas mãos limpas, elas que tiveram inúmeras oportunidades de se sujarem.
No trecho restante de sua caminhada, disse-me ele: atente sempre para o fato de que a alma humana tem mais portas falsas e fundos duplos do que se possa imaginar. Foi por conta de raciocínios como esse que ele desfez, pessoalmente, e sem nenhum alarde, uma trama verde que tinha por objetivo atingir-me profissionalmente naquele alvorecer magnífico de 1997.
Ele representou para a minha vida, durante esse nosso longo e fraterno convívio, uma referência intelectual, além de uma marca de profundo e sincero afeto, numa relação marcada pela ideia de que ele era, sim, para quem perdera o pai aos 16 anos de idade, uma espécie de conselheiro paterno. Isso era o que valia e o que importava para mim. E assim os vínculos se fortaleceram, até aquela primavera de 2010, o tempo da sua partida. Numa tarde em que o Sol vestia de luz intensa o chão verde das coxilhas e das planícies, das moitas e do capinzal, deixando-se refletir com suavidade nas águas paradas das sangas e dos açudes. E estimulando ainda, com todo o seu calor, as formações rigorosas da disciplina migratória, naquele instante em que os pássaros voam em linha reta, demandando as árvores dos cerros e o farto campo das estâncias.
E falando-se em luz, e imaginando-se a porta do grande mistério, que se busque no próprio Mozart, em seus roteiros perdidos escritos em 1943, aquele trecho no qual ele se aproxima de um pensador para fazer-lhe uma pergunta: Tu que vives na altura! Até mim desce e fala. Tu tens um Deus também? Tu crês que um Deus oculto, (que é o fruto que germina e o talento que estala) vivendo na tua alma acompanha o teu vulto?
Deverei eu subir ao astro em que tu habitas para lá desvendar o segredo que tens? E acaso, pensador, tu de fato acreditas que eu possa ver contigo o que teus olhos vêem ?
Mozart Victor Russomano, Doutor Honoris Causa e Professor Emérito das grandes Universidades da Europa e das Américas, bem merece, a esta altura, o trecho derradeiro daquela célebre citação de Victor Hugo tão bem guardada pela História: A providência sabe o que faz; quando, portanto, coloca o povo ante o mais alto segredo, dá, para meditação, a morte, que é a grande igualdade e, ao mesmo tempo, também a grande liberdade.
Quando um espírito elevado penetra em outra vida, ninguém poderá dizer que ele enfrentará o incógnito! Não! Não é o incógnito! Não é a noite – é a luz. Não é o nada – é a eternidade. Não é o fim – é o começo.