ARTIGO – MEMÓRIAS DE UM ENCRENQUEIRO – PARTE 3

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Lamarca

Carlos Eduardo Behrensdorf*

Voltando ao Rio de Janeiro. Incorporado ao 2º Regimento de Infantaria, para treinamento de Polícia Militar, fui selecionado para o 3º Pelotão da 7ª Companhia de Fronteira. O comandante da 7ª CIA era o major Álcio Costa e Silva, filho de um futuro presidente da República, Artur da Costa e Silva. E foi aí que o jovem 2º tenente Carlos Lamarca entrou em cena.

A primeira conversa com ele não foi uma conversa. Eu respondia o que ele perguntava. Como todos os soldados, eu estava em posição de sentido. Lamarca chegou, olho no olho, e lascou: “Tua cara não me é estranha. Já nos encontramos antes?” (Pensei logo: Porra! Começou a sacanagem. Nunca vi esse magro). Respondi: “Acho que não, tenente”. Ele: “Você é de onde?” Eu: “Pelotas, Rio Grande do Sul, tenente”. Ele caminhou um pouco batendo a varinha de comando no coldre (era destro) e voltou: “Conheço sua cidade. Como é seu nome?” Eu: “Carlos Eduardo, tenente”. Ele: “Eu sou o Carlos Lamarca”. Olhou bem na minha cara e falou: “Você vai para a fronteira comigo”. E foi assim com a maioria dos “escolhidos”.

E continuou sua caminhada pelas instalações do Pelotão, parando para conversar com alguns soldados. Fiquei na minha. Lamarca não era exatamente um atleta. Magrão, cara de invocado, mas ainda com o cheiro de Academia Militar das Agulhas Negras. Parecia medir 1.70 ou pouco mais. Nunca medi nem perguntei. Só depois da chegada à sede do Pelotão em Rafah Camp, percebi que estava no cu da fronteira palestina com Israel. O que era aquilo? As dúvidas passavam na medida em que Lamarca falava. Era um oficial preparado para comandar. Disse-nos onde estávamos, o porquê de estarmos ali, falou da importância do Pelotão e da Companhia, como deveríamos nos comportar, da responsabilidade de vestir os uniformes com a identificação “Brasil” e os capacetes azuis da United Nations Emergency Force (UNEF). Um recado dele foi muito claro: “Mijou fora do penico comigo, vai em cana e será repatriado”.

De agosto até a véspera do Natal de 1962, vivi a rotina de fronteira da Faixa de Gaza com Israel: patrulhar com outros três soldados, um cabo e um sargento. Apesar do calor, compreendi que entrara numa fria. Nossa rotina: patrulhar seis quilômetros de ida e volta, ou seja, 12 km das 6 horas ao meio-dia; mesma coisa no dia seguinte, mas fazendo o mesmo trajeto do meio-dia às seis da tarde. No terceiro dia, era das seis da tarde à meia-noite. E, finalmente, da meia-noite às 6 horas da matina. Pelo menos neste horário não havia sol.

Havia também a Torre do Pelotão para vigiar o horizonte de areia em Israel. Para completar, ficávamos em dupla em um dos três Postos de Observação fixos na Linha Demarcatória de Armistício, que separava palestinos e israelenses. A conexão ocorria por meio de telefone de campanha, daqueles que precisavam de uma manivela para chamar e permitir a conversa. As atribuições diárias eram iguais às de qualquer quartel: despertar, arrumar a cama, fazer fila para o banheiro, tomar banho, limpar o banheiro, tomar café e almoçar. A xepa me fazia lembrar minha avó materna, Dona Tolentina, nascida em Quaraí: “O que não mata, engorda”.

Cuidados especiais: antes de calçar os coturnos sacudir para ver se havia ou não escorpiões. Antes de dormir era a vez de sacudir os lençóis para afugentar possíveis, antipáticas e fedorentas aranhas cinzentas. Não poucas vezes conversei com o tenente Lamarca no comando do Pelotão. Das coisas que me falou sobre ele, sei que nenhuma delas é segredo na atualidade. Seu pai era sapateiro e a mãe dona-de-casa. Ele viveu até os 17 anos no Morro de São Carlos, no Estácio, no Rio de Janeiro.

Numa das conversas, ele me disse que era conhecido no morro pelo apelido de “Careca”. Eu disse que o meu apelido era “Garça” e que no Ginásio Pelotense, onde estudei, alguns professores me chamavam pelo apelido. Ele quase riu, mas deu o corte: “Aqui você é 09” e mudou de assunto. Minha identificação no “biriba” que trazia na gandola era SD Eduardo – 6109. Em 1955, Lamarca ingressou na Escola Preparatória de Cadetes, em Porto Alegre. Em 1958, chegou à Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende (RJ). Tornou-se aspirante em 1961. Desde cedo se destacou como exímio atirador. Como capitão, foi instrutor de tiro para caixas do Bradesco. Indicado pelo Exército, ele treinava as funcionárias do banco para enfrentar os assaltos, então praticados por organizações de esquerda. A vida tem coisas intrigantes: o instrutor virou guerrilheiro. Os livros revelaram o que ocorreu depois.

A lembrança que tenho dele é a de um jovem comandante que se impunha aos seus comandados. Sabia ouvir e julgava dentro nos padrões do Exército. Sobre o Brasil conversou comigo algumas vezes, mas sem fazer pregação. Acreditava em necessárias mudanças futuras nas estruturas sociais do país e também no Exército, instituição que em seu entendimento tinha um papel social dos mais importantes a desempenhar. Não me lembro dele falando em revolução ou luta armada.

Após a sua morte não poucos fizeram comentários sobre as leituras da vida e obra de pensadores e líderes comunistas. Comigo não falou nem sobre o Almanaque do Tico-Tico, com Reco-Reco, Bolão e Azeitona. Quando dava uma ordem, era claro: olhava firme para aquele com quem falava. Numa das nossas conversas, falou dos seus sentimentos em relação ao povo palestino e ao futuro. Não tinha grandes expectativas para as crianças de Gaza. Outra coisa: conhecia seus soldados pelos nomes e um pouco da história de cada um de nós. Era respeitado por todos.

Um arranca-rabo
Uma noite, Lamarca nos levou – aos que estavam de folga – em um caminhão da Companhia ao “cinema” no Comando da 7ª. Nossa chegada não foi das melhores: “Companheiros” do 10º Contingente, que se autodenominavam “antigões”, nos receberam aos berros de “Imagem do Cão!” (sinônimo de recruta, novato), mais empurrões e palavrões, ameaçando-nos até com cascudos. Era um trote burro como qualquer outro.

Respondemos também aos berros, lembrando a eles a milenar profissão das mulheres que os haviam parido. Ou seja, sugerimos que todos eles eram uns belos FDPs… Lamarca entrou na confusão. Enquadrou os “antigões” gritando ordens. Como se não bastasse, um 1º tenente desceu as escadas e gritou com Lamarca. O grito do jeito que veio voltou. Esquentou o tempo e nós ficamos amontoados ao lado do Lamarca. E foi aí que surgiu o major Cid Scarone Vieira. Em poucos segundos, enquadrou a todos: antigões, noviços, Imagens do Cão, FDPs e tenentes. Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Saí de fininho para fumar e ainda descolei duas garrafas de Tuborg. Não vi o filme.

Cid Scarone Vieira, depois, de 1969 a 1975, seria prefeito nomeado de Rio Grande. Quando ele visitou o Diário Popular, eu trabalhava lá, de terno e gravata. Um abraço do major Cid estalava os ossos.

Segue…

*Jornalista