ESTAMOS EM GUERRA
Paulo Gastal Neto*
No livro “A Última Batalha”, de Cornelius Ryan (Editora L & PM – 446 págs.), o autor descreve a vida em Berlim durante a batalha final da Segunda Guerra Mundial, em 1945. Uma cidade atormentada por sirenes, correrias inesperadas, improvisos e destruições. Paralelo a tudo isso, os bombardeios constantes por parte das ações das tropas aliadas contra os delírios do terceiro Reich. Porém, curiosamente e necessariamente Berlim mantinha a sua rotina dentro do possível com doze mil policiais que continuavam em atividade; os carteiros mantinham a entrega das correspondências; os jornais saiam diariamente com as suas limitações; os serviços de telefonia e telégrafo não haviam sido interrompidos; O lixo era recolhido de maneira precária; Alguns teatros, cinemas e inclusive parte do zoológico destruído, estavam abertos. A Filarmônica de Berlim estava encerrando sua temporada, as lojas de departamento faziam promoções especiais. Os armazéns e padarias abriam todas as manhãs e seus donos, sem saber se chegariam ao fim do dia, cumpriam as suas tarefas de tentar abastecer as necessidades daqueles berlinenses que não haviam deixado a cidade. Os trens subterrâneos ou elevados continuavam funcionando sobre as linhas que não tinham sido derrubadas por bombas. Os poucos bares sofisticados e restaurantes resistiam o quanto podiam e viviam superlotados. E assim era a vida em Berlim narra Ryan.
Em um distrito rural, ao sudoeste da capital alemã, um leiteiro chamado Richard, logo ao amanhecer, todos os dias, estava de pé e distribuía o seu produto desviando de destroços e até de corpos mutilados por bombas que caíam a todo momento. A vida prosseguia e Richard testemunhava a morte de vizinhos, amigos e possíveis fregueses dos produtos de sua leitaria. Era uma espécie de ‘loteria’ chegar ao fim do dia vivo e ao lado de seus familiares. Passar pelas 24 horas subsequentes e a cada período que amanhecia a epopeia se renovava, destaca Cornelius em seu livro. Como todo mundo em Berlim, o leiteiro de 39 anos vivia constantemente cansado naqueles dias. Ele não fazia a menor ideia de onde as bombas haviam caído na noite anterior, mas sabia – ao amanhecer – que nenhuma atingira os estábulos – pelo menos naquela madrugada – e o precioso gado leiteiro estava salvo para mais um dia de trabalho.
Essa contextualização serve apenas para que possamos traçar um paralelo: guardadas as devidas proporções e sabendo que uma guerra é um flagelo incomparável com o momento que vivemos, é possível dizer que a cada dia que acordamos não sabemos como será o pós 24 horas. Se teremos a notícia da morte de um amigo, um familiar, um colega de trabalho, um vizinho, um comerciante próximo ou a informação que tenham contraído a chaga que assola o mundo desde o início deste 2020 sem precedentes. Ele deixou nossa vida sem planificação pessoal. Sem planos de médio e longo prazos. E mais: reduziu nossa vida emocional positiva, nos tirou uma boa festa, intimidou o abraço de chegada ou despedida, liquidou com as reuniões de fim de tarde entre colegas, enfim, 2020 alterou a nossa cultura latina de convivência espontânea. Tudo se esvaiu por causa da ameaça ‘da bomba’ que a qualquer momento pode nos atingir ou atingir o nosso vizinho do lado, nosso familiar ou aquele que nunca vimos ou conhecemos, mas que são entes queridos de alguém e entrarão para as estatísticas que nos assombram.
Nossa mente é torpedeada diariamente com expressões como UTI, hospital, vacina, pandemia, doença, descrença, gráficos, curva móvel, respiradores, entubar, respirar….morte! Não é uma guerra? Não estamos massificados pela desgraça, pela chaga e pela tentativa de sobrevivência? Será este um Natal de festa? Um passar de ano de alegria? Óbvio que não! Assim como o leiteiro do livro de Cornelius Ryan, agradecemos por um simples amanhecer; nos conforta o ato de respirar sozinho; perceber a mãe feliz ao rever o filho saudável; nos conforta terminar mais um dia ao lado dos nossos e ter a perspectiva de mais 24 horas. Não é uma espécie de guerra?
*Radialista e Editor do Site do Pelotas Treze Horas