Um general que vendia enciclopédias
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Henrique Pires*
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Apesar da repetição – como se fosse mantra – que Braga Neto é o primeiro general preso, essa é apenas mais uma consequência de um apagão histórico, que faz muita gente acreditar que o mundo iniciou consigo e que o passado é um lugar distante, onde não houve nada de interessante. “Quem gosta de passado é museu”, repetiu bastante uma liderança política na eleição passada. Fazer o quê?
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O general Lott, quatro estrelas, herói nacional, já titulado marechal, foi preso. O marechal Hermes, antes dele, com todas as estrelas possíveis, depois de ser presidente da República e senador pelo Rio Grande do Sul, também foi preso.
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A diferença é que as prisões destes e outros foram determinadas por ato arbitrário do poder executivo, sem processo legal, sem chance de defesa, apenas porque o poderoso de plantão achou que tirar a liberdade de alguém era algo simples e comezinho.
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Braga Neto, ao menos foi detido em decorrência de um processo legal, onde terá ampla defesa. E vai continuar recebendo seu soldo, provavelmente conservará suas comendas. Quem não teve defesa, foi o general Assis Brasil, chefe da Casa Militar do governo Jango. Não aderiu ao golpe militar de 64. Foi com Jango na viagem ao Uruguai. Acomodou seu chefe e família por lá e voltou ao Brasil. Não deixou correr o prazo de oito dias longe do quartel, pois caracterizaria deserção. Preso imediatamente, apesar do currículo impecável, teve sua ficha funcional rasurada, perdeu o direito de constar como detentor de tantas medalhas de primeiro lugar conquistadas. Foi declarado “morto” nesse arranjo tipo jaboticaba, que ainda existe nas Forças Armadas, que considera um vivo como se tivesse morrido e passa os vencimentos, aos quais faz jus, para a “viúva” – de marido vivo obviamente.
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No caso dele, três ou quatro anos depois, morreu a viúva. E ele, cujos vencimentos ela recebia, ficou sem ordenado algum, afinal “estava morto”. Coisas que só acontecem em ditaduras, todas nojentas, como bem disse Ulisses Guimarães.
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Trabalho? Quais empresas empregariam um general, chefe da Casa Militar cassado, ex-adido Militar, professor de história e geografia em academias militares, onde não poderia voltar a colocar os pés, pela vontade de ex-colegas de farda rancorosos, que não admitiam que alguém tivesse a coragem de ficar ao lado da lei, enquanto eles próprios a rasgavam e descumpriam.
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Gaúcho de São Gabriel, esse general herói é pouco lembrado. Soube que sobreviveu honradamente, batendo de porta em porta em Porto Alegre, vendendo enciclopédias Barsa.
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Ouvi dizer que suas visitas de venda eram sensacionais, seu conhecimento histórico, seu brilho intelectual, seu passado patriótico abriam portas de escritórios e casas de família. Somado a isso o fato da enciclopédia ser boa, ele, general cassado, sem soldo e sem medalhas, vendeu livros e ajudou a educar muita gente, naqueles tempos sem Google, onde uma boa enciclopédia ajudava tanto.
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Os tempos são outros, quando os atuais detidos forem soltos, de tornozeleiras eletrônicas ou não, terão seus direitos respeitados, conforme manda a Constituição. A mesma contra a qual atentaram e que desprezam tanto.
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*Henrique Pires é jornalista e historiador.