ARTIGO – GENTE EXTRAORDINÁRIA

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Gente Extraordinária

em libelo acusatório à burrocracia e a favor de Victor Russomano Júnior

Mônica Beatriz Corrêa Meyer Russomano

22/01/2020

“Se por trinta e dois dias, nesta furna escura, Deixei dormir a minha maldição,
– Hoje, farta e cansada de amargura,
Minh’alma se abrirá como um vulcão!” *

(*Adaptação da autora da estrofe introdutória do poema  “Maldição”, do grande  OLAVO BILAC)

Os leitores do Diário Popular de Pelotas que me perdoem, mas a Parte 5, final, do bisavô Frederico vai ficar sine die. Antes, tenho uma obrigação a cumprir. Com o meu querido, querido, irmão, o advogado pelotense Victor Russomano Júnior, vulgo Alemão, o “Pinto Preto” da nossa Mãe, Gilda Maciel Corrêa Meyer Russomano (18/9/1923 – 18/8/2007), nascido em 19 de junho de 1958 e falecido às 2 horas e 45 minutos da madrugada de anteontem, 20 de janeiro de 2020, em Brasília, onde residia desde a década de 70, aos 61 anos de idade, e que se foi em meio aos ouropéis natalinos das Festas, viradas em Calvário de Paixão.

E inicio parafraseando um dos meus dois sobrinhos, afilhados e advogados, como é vocação entre nós, Fernando Luís Russomano, numa das homenagens a Victor desta quarta-feira, 22 de janeiro, em uma das Turmas do Tribunal Regional do Trabalho do Distrito Federal, que, por sua vez, parafraseou o Victor e, este, o nosso Pai, Mozart Victor Russomano (05/7/1922 – 17/10/2010), num discurso em que confessou possuir uma “alma fria. Fria do vento Minuano gaúcho, que sopra, enregelante, nos pampas do Sul”.

Pois trago minh’alma gelada. Bate queixo em pleno verão, tiritante de derrota épica em peleja aguerrida, inglória e perdida para uma doença galopante, reconheço, mas à qual se somou a falta de um serviço nacional de importação e liberação urgente de remédios para pacientes terminais ou quase e que, como o Victor, não tenham condições físicas de viajar. No caso dele, pra piorar, atrás da única droga no mundo com alguma possibilidade de cura. Uma possibilidade de cura? Sim. Negada pela Pátria amada. A ele e a quantos filhos deste solo, desdobrado em mãe nada gentil?!

Explico do princípio e com maiores detalhes: Victor teve um câncer, em 1991, que venceu, depois de uma luta feroz, de que saiu com uma eterna espada de Dâmocles balouçante sobre a cabeça. Vi nossos Pais envelhecerem, curvados de pesar e preocupação, mas vi igualmente Victor reagir e se tornar um profissional brilhante aos poucos 30 e poucos. Estimado, respeitado, workaholic. Bem-sucedido, mas avesso a aparências, que desdenhava. Para mim, que aprecio certos “luxos”, “lamentável” e franciscanamente despojado, como dizia e diria a tia Rosah Russomano (31/10/1919 – 18/5/1999).

Queria ter se graduado em Física e ser cosmólogo. Devorava as teorias de Stephen Hawking (08/01/1942 – 14/3/2018) e autores do gênero. Mas não era um fã apaixonado das aplicações quânticas, por exemplo. Discutíamos à beça. O Pai se divertia nos vendo engalfinhados! Minha veia heterodoxa simpatiza com quantizações e com metafísica; a dele, um ateu declarado – atraído pela possível existência de espíritos… – se via dividida entre a Razão e a Crença, vinda do feeling, do arrepio na espinha, herdados da bisa ítalo-brasileira Carmella Maria Fiore Russomanno (13/7/1865 – 01/12/1922) e de remotos avós índios e… templários.

Fui a sua “Mãe Segunda”, apelido que ele usou do berço ao primeiro casamento, e falo do alto desta investidura. Tínhamos oito anos de diferença. E éramos Gêmeos. Ou melhor, de Gêmeos. O Pai – agnóstico e descrente de qualquer realidade Absoluta – achava os nossos temperamentos parecidos demais, e tipicamente contraditórios, como debitado ao signo, em outra demonstração de incongruência doméstica, em que a colossal racionalidade peculiar paterna cedia espaço, por vezes, a lucubrações e papos (bastante) eventuais de características compartilhadas por determinadas pessoas, como Victor e eu, nascidas em datas próximas, e que o intrigavam deveras.

Recentemente, Victor adoeceu de novo. O mesmíssimo diagnóstico pavoroso e apavorante, agora num rim, extirpado em maio de 2019, sem que ele desse um pio sobre a cirurgia, às três irmãs, antes de outubro ou novembro de 2019, apesar de termos conversado no meu aniversário – em 10/6 – e no dele – em 19/6 – e noutras ocasiões diversas. Em 21 de dezembro de 2019, então, estando eu na tranquilidade da tarefa prazerosa de reformatar as páginas de um conto de fadas que escrevi, de inspiração gnóstica, cátara e cabalística, para publicação nas normas de impressão da Amazon.com, isto é, às vésperas do Natal e a léguas de problemas à vista, na minha alienação, Victor me telefonou. Custei a descer do meu Mundo Encantado para o Desencantado dele. O Mal, na forma de uma lesão secundária remanescente, pequena e tratável, num pulmão, avançara e deixara de responder à quimio ou à imuno. Tirou na continuidade a vesícula e eram só cálculos, aleluia! Ligou-me radiante… mas sobreveio uma infecção de causa nunca esclarecida. E dois laudos apontaram presumíveis abcessos hepáticos, comprovados, por desgraça, a seguir, como metástases. Qual a chance naquelas alturas? Apenas uma. A medicação recém aprovada nos Estados Unidos, creio que no findar de 2019 ou por aí, numa coincidência daquelas, denominada Padcev, o enfortumab vedotin-ejfv, a “janela” aberta para o Victor, como ele próprio a chamou, e a brecha a que se apegou e aferrou, com probabilidade de cura total de 12% e de resultado parcial expressivo de 32%, no universo dos 125 voluntários estudados. Sou arquiteta. Meus neófitos e limitados dotes “clínicos” oncológicos e os linguísticos do inglês – lastimo, mas minha educação favoreceu o francês e, minha vivência, o espanhol – não me permitem afirmar com 100% de certeza se os 12% estão incluídos ou não nos 32%, embora eu acredite que não. Enfim, sugiro ao público curioso e mais iluminado que eu, bem como aos especialistas da área que lidam com conceitos e números rigorosos, que acessem fontes como a do site investor.seattlegenetics.com/press-releases/news-details/2019/FDA-Grants-Accelerated-Approval-to-Astellas-and-Seattle-Genetics-PADCEV-enfortumab-vedotin-ejfv-for-People-with-Locally-Advanced-or-Metastatic-Urothelial-Cancer-the-Most-Common-Type-of-Bladder-Cancer/default.aspx , já alertando porém de que há um endereço – ou vários? – pelo que lembro, que contabiliza os 12% dentro dos 32%. Mas o que interessa é que Victor apostava até no 1/3. E quem é tão ingênuo e ignorante em História pra descartar com displicência o valor do ânimo, do ímpeto otimista, para a vitória numa guerra?! E para o fracasso nela, na ausência deles?! Pois era uma guerra! Em que me joguei de corpo e alma. Aboli as festividades – claro! – lazer, viagens, os hobbies de escrevinhar e desenhar. Me enfurnei em casa em contato constante, diuturno, com minha cunhada, Renata D’Carlos Arantes Theodoro Russomano, a incansável e inconsolável Rê, coitadinha, que definhou com ele de um jeito escrachado. As duas fizemos de um tudo, buscando uma e outra saída. Debalde. Topamos com uma muralha intransponível de descaso ou coisa pior, mas que tentamos, tentamos. Desde sensibilizar outros políticos – além do Deputado Federal Celso Russomanno, que se sensibilizou e nos acudiu de imediato – para que nos auxiliassem em algo, por menor que fosse, às tentativas de comprar o Padcev por intermédio de convênios preexistentes entre cancerologistas e hospitais de lá e de cá, e às de agilizar os procedimentos da transação nas importadoras – fechadas durante os feriados de finais de 2019 ou boa parte deles – anunciada para um (impensável) mês no mínimo, acrescido do período de tramitação na Anvisa. Em resumo? O que der para imaginar, imaginamos. Mas falhamos. Na brigalhada contra o relógio. No combate de David contra Golias, em que Golias ganhou a parada e a corrida. É que o maldito tumor cresceu devastador e de um salto no expirar de 2019. Num exame, um fígado limpo, transcorrida cerca de uma semana, um fígado tomado. Se alguém, afora o pessoal técnico contratado, ajudou a carregar o piano? Decerto. Parentes e amigos em geral, no entanto distantes, numa época de celebrações, movimentação e saídas, em que destaco a minha filha, Tonia Russomano Machado; o primo Celso Russomanno supracitado; as primas Nailê e Thaís Russomano; a prima da Rê, Anahy Cibele Morais; as minhas duas sobrinhas Juliana, a  “norte-americana”, Machado Kern, e a brasiliense,  Russomano Galvão; e três médicos daqui de Porto Alegre, os Doutores André Fay, Carlos Barrios e Luís Fernando Moreira, em ordem exclusivamente alfabética, que foram desprendidos, amabilíssimos, fantásticos.

Esbarramos em todo o tipo de dificuldades. Não adiantou de nada o Victor dispor do dinheiro – uma verdadeira fortuna, paga, mas ainda não repatriada ou, se repatriada, ainda não devolvida, após a suspensão, prévia à remessa para nós do Padcev, dado o infeliz desfecho. Não adiantou de nada arranjarmos uma interlocutora fluente em inglês para os esforços – frustrados… – de conseguirmos a sua venda direta pelo fabricante ou pelos distribuidores dos USA. Não adiantou de nada a garra dos três profissionais gaúchos citados, que se desunharam de todas maneiras legais e oficiais cabíveis, através dos Acordos mencionados de cooperação internacional de pesquisadores e estabelecimentos de Saúde de ambos países, para alcançarem em seguida o Padcev ao Victor e/ou levar o Victor ao Padcev.

Um prazo de entrega de 30 e tantos a 60 dias pra começar a debelar uma invasão que progredia a cada segundo?! De 30 e tantos a 60 dias quando as frações de minuto importavam?!  Por misericórdia! Só podia dar no que deu. Na tragédia do desmoronamento das nossas ilusões, embalada pelo fundo sonoro do tic-tac angustiante dos dígitos e ponteiros que se aproximavam de 2020. E do Fim.

Férias são complicadas para tratar de moléstias e, sobretudo, de uma com essa gravidade, é óbvio. No meio de comemorações natalinas e de Réveillon, nem se fala! MAS É INACEITÁVEL INEXISTIR UM PLANTÃO PERMANENTE, AQUI NO BRASIL, QUE, EM CASOS EXTREMOS DE UM ENFERMO INTERNADO, À MERCÊ DUM INIMIGO IMPLACÁVEL, QUE ATACA, INEXORÁVEL, NUM ÁTIMO, NÃO ASSUMA O CONTROLE DUMA SITUAÇÃO DESSAS E NÃO PLIM-PLIM-PLIZE O QUE FOR EM 24 OU 48 HORAS, A QUALQUER TEMPO! Do contrário, é omissão de socorro. Ao menos, pra mim. E é recusar o último pedido de um doente em seu leito de morte.

Por tudo isso, suplico a alguma autoridade benfazeja que, por ventura, me leia e se impacte com o ocorrido, que implante logo uma facilidade dessas no País e batize-a in memoriam de Victor Russomano Júnior. Se o remédio teria resolvido? Se teria apresentado o efeito esperado? Nunca saberemos de fato, não é mesmo?! Mas eu sei, com total segurança, que Victor – e quantos como ele? – não se veria desguarnecido e sem munição, defesa ou o mero conforto psicológico de uma salvação potencial à mão, como se viu, se tivéssemos um órgão ou setor governamental a que recorrer, que se encarregasse das diligências necessárias para o rápido enfrentamento de um problemão como esse.

Porque, sim, acho que a Esperança in extremis poderia ter alterado o epílogo.  Que a Caridade de uma mentira piedosa, idem. Aliás, neste particular, ignoro as preferências do superpragmático Victor, contudo, no que me toca, aproveito a deixa pra manifestar de público, por antecipação, para que ninguém bobeie na hora H, que prefiro uma encenação convincente e condoída a uma ducha gelada de realidade nua e crua, que me encharque de súbito de cima a baixo, na prática atual que já é de praxe – e da qual não pouparam o pobre desenganado do Victor?!

Foram 32 dias e 32 noites de expectativas e desilusões, a contar de 21/12/2019 ao anoitecer de 22/01/2020, quando principiei este texto. Foram 32 dias e 32 noites sucessivos de quimeras destruídas, uma a uma. Foram 32 dias e 32 noites de confrontos sem quartel. Foram 32 dias e 32 noites de conflitos quixotescos. Foram 32 dias e 32 noites de caos e escuridão, que se repetirão, para mim, ad infinitum. Para o Victor? Foram 32 dias e 32 noites de pesadelo, precedidos por demasiados outros dias e noites, indizíveis de tão terríveis, também.

Mas se nesses 32 dias e nessas 32 noites, nesta furna escura, deixei dormir a minha maldição, hoje, velha, farta e cansada de amargura, minh’alma se abrirá como um vulcão! E, em torrentes de cólera e loucura, rogará aos Céus, perdoada de antemão, que sobre muitas cabeças fervam, ininterruptos, 32.000 dias e 32.000 noites de silêncio e de tortura e 32.000 dias e 32.000 noites de agonia e solidão!**

(** Adaptação da autora de parte do poema

“Maldição”,

do grande

OLAVO BILAC)