ARTIGO – UMA NOITE COM VÊNUS E UMA VIDA COM MERCÚRIO

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1 a cada 5 londrinos contraía sífilis até os 35 anos no século 18. Imagem ilustrativa – Internet

Uma noite com Vênus e uma vida com Mercúrio

Pedro E. Almeida da Silva*

A sífilis, uma das doenças mais antigas e enigmáticas da história humana, carregou por séculos uma mescla de mistério e preconceitos. O nome sífilis surgiu do poema “Syphilis sive morbus gallicus” (Sífilis ou Doença Francesa) escrito por Girolamo Fracastoro, que descrevia uma doença terrível enviada por Apolo como vingança contra o pastor Syphilus. A sífilis recebeu diversos nomes populares em diferentes locais: Doença Francesa (Inglaterra), Doença Napolitana (França); Doença Polonesa (Rússia); Doença Cristã (Turquia). Era comum, antes do iluminismo científico, que os povos buscassem uma fonte externa para explicar o infortúnio. Curiosamente, ainda persiste entre nós, em pleno século XXI, a tentativa de associar a causa das doenças a “outros”, como observado na covid-19, que foi chamada de “Gripe Chinesa” por alguns grupos.

Em 1905, Fritz Schaudinn e Erich Hoffmann identificaram a bactéria Treponema pallidum como agente causador da sífilis, facilitando a prevenção, diagnóstico e tratamento. As dificuldades do tratamento eram caracterizadas pela expressão “Uma noite com Vênus e uma vida com Mercúrio”. Uma noite com Vênus referia-se à noite de sexo que possibilitava o contágio, enquanto uma vida com Mercúrio remetia ao longo e doloroso tratamento com mercúrio, muito utilizado entre os séculos XV e XIX. O surgimento da penicilina, na década de 1940, possibilitou um tratamento seguro e eficaz, revolucionando o manejo dos pacientes com sífilis.

Atualmente, estima-se que a cada ano globalmente ocorram sete milhões de novos casos de sífilis, afetando principalmente adultos jovens. No Brasil, a incidência da doença tem aumentado de forma preocupante, especialmente os casos de sífilis congênita, que podem levar a graves complicações para os bebês, incluindo natimortalidade, prematuridade, baixo peso ao nascer e malformações congênitas. Além disso, a infecção pode comprometer o desenvolvimento neurológico da criança, resultando em sequelas permanentes com redução da qualidade de vida.

Infelizmente, ainda não existe uma vacina para a sífilis, sendo assim, a prevenção eficaz está fundamentada no uso correto e responsável de preservativos, que também protege contra outras infecções sexualmente transmissíveis, como HIV e gonorreia. Além disso, o diagnóstico laboratorial precoce e o acompanhamento adequado no pré-natal, tanto para gestantes quanto para seus parceiros, são medidas essenciais para prevenir a transmissão vertical e conter a disseminação da doença. Uma enfermidade que já foi atribuída a deuses vingativos e nações rivais hoje é controlada com a penicilina, cuja descoberta não foi um mero acaso, mas sim o resultado da acumulação de conhecimento científico ao longo dos séculos. O investimento contínuo em pesquisa e saúde pública não é apenas necessário, mas essencial para o controle das doenças e melhora da qualidade de vida.

*Professor Titular da Universidade Federal do Rio Grande – FURG