ARTIGO – O VOO 715

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O VOO 715 

Por Clayton Rocha

E o acidente aéreo, o leitor já terá pensado nele?  Aquilo que só acontece com os outros, no avião dos outros, na vida dos outros, de repente…

Pois este foi o tema que, inesperadamente, me vi forçado a examinar, naquela poltrona 31 C do Boeing da Varig que sobrevoava o oceano naquela  longa madrugada que começara espanhola, em Barajas, numa Madri gelada e coberta de neblina. O Voo 715, que até então era puro silêncio em velocidade de cruzeiro, passara a enfrentar, por volta de 2 horas, aquela situação extra que requer paciência, desarmamento dos espíritos e extremo bom-senso: João Luis, um cidadão da Paraíba, em surto psicótico, tomado pelo mais completo desequilíbrio emocional, começa, em fração de segundos, a quebrar o interior da aeronave, a vociferar contra inimigos imaginários, a arrancar a fiação, a puxar as máscaras, a dar socos na camada acrílica e a tentar alcançar a porta da saída de emergência.

Todos os esforços da tripulação e dos passageiros foram inúteis nas três horas seguintes, período no qual o Comandante Vetorazzo exibiu estilo chinês, serenidade de um monge e frieza em hora delicada – voava-se sobre o  Oceano Atlântico – para que pudesse assumir o controle total da situação, bem como o respeito e a admiração de tantos quantos encontravam-se a bordo do avião da Varig.

Todos compreenderam que aquele passageiro teria de ser levado a sério porque qualquer ação impensada, partisse ela da tripulação ou de quem quer que fosse, poderia nos levar ao imponderável. E tudo haveria de ser cumprido à risca enquanto o avião cortava os céus, tendo, lá embaixo, um oceano inteiro como desagradável perspectiva noturna. Pois foi aí que, numa imagem carregada de ironia, busquei algo que ficara gravado em fogo em minha mente, e que era a mais recente confissão de Darcy Ribeiro, retirada de seu último livro, onde ele dizia: – “Termino esta minha vida exausto de viver, mas querendo mais vida, mais amor, mais saber, mais travessuras. A você que fica aí, inútil, vivendo vida insossa, só digo: Coragem!  Mais vale errar, se arrebentando, do que poupar-se para nada. O único clamor da vida é por mais vida bem vivida. Essa é, aqui e agora, a nossa parte. Depois, seremos matéria cósmica, sem memória de virtudes ou de gozos. Apagados, minerais. Para sempre mortos.”

Envolvido pelas palavras desse brasileiro incomum, noto que em meu bolso encontra-se aquele famoso “dente de crocodilo egípcio” que talvez tenha sido o talismã protetor, no passado já distante, de dois amigos meus, Mozart Víctor Russomano e Júlio Real, quando o Boeing da Varig em que viajavam explodiu na Monróvia, em acidente aéreo de grande repercussão e de poucos sobreviventes. Pois o “talismã”, símbolo de vida longa, que acompanhara Mozart durante vinte e cinco anos, e que lhe havia sido presenteado no Cairo, (com efeitos imediatos para viagens aéreas), me fora enviado recentemente, juntamente com os votos de que fosse capaz de me proteger pelos céus do mundo, em nome dos faraós,  para infortúnio de meus desafetos.

Tais lembranças, em hora apropriada, me deixam revigorado e consciente de que estou a salvo e…para sempre vivo!  Afinal, o pior poderia ter acontecido, desde que não houvesse, a bordo, no bolso do paletó, um “dente de crocodilo”, um talismã vindo do Cairo, talvez para ajudar a melhorar a imagem do próprio Egito, manchada pelo sangue inocente dos turistas europeus que o visitaram em 1997, naquela que acabaria sendo  uma viagem sem volta.

As lições recolhidas entre Madri e Recife, em horas difíceis, me ensinaram que a vida é curta demais para ser pequena. E que o entendimento entre os homens é o único caminho capaz de dar sentido à própria existência. Algumas noções de finitude, acompanhas da gratidão pela vida, talvez ainda sejam as únicas posturas mentais capazes de desarmarem os espíritos embrutecidos, ocupados pelo ódio, cheios de falsidade e de egoísmo, componentes estes que são bem mais graves do que o íntimo desse pobre coitado, esse João Luis da Paraíba, cuja doença mental já o absolve por inteiro nesta hora em que o avião da Varig desliza, a salvo, pela pista do Aeroporto dos Guararapes, numa bendita “terra firme” pernambucana…!

P.S. – Esta crônica de viagem (O Vôo 715)  escrita um ano depois, é dedicada ao Comandante Vetorazzo e à tripulação do Voo Madri-Recife-Rio-São Paulo, realizado no dia 16 de novembro de 1997.

PS de PGN: Muito apropriada para o momento vivido!