ARTIGO – O AVIADOR QUE VIROU CANÇÃO

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Joaquim Pedro Salgado Filho, Ministro da Aeronáutica em 1943, homologou o avião “Cidade de Pelotas”, construído por Joaquim Fonseca. Foto: pelotascultural.blogspot.com

O AVIADOR QUE VIROU CANÇÃO

Lourenço Cazarré*

Em abril de 1943, Joaquim da Costa Fonseca Filho viajou ao Rio de Janeiro em um avião que havia construído em Pelotas. Foi uma viagem solitária, concluída em 13 horas e 14 minutos, mesmo com um “terrível” vento contrário e após quatro escalas (Porto Alegre, Florianópolis, Paranaguá e Santos).

O objetivo do aviador era solicitar ao gaúcho Salgado Filho, titular do recentemente criado Ministério da Aeronáutica, licença para constituir na Princesa do Sul uma fábrica que produzisse em série exemplares daquele aeroplano, o F2, o segundo que Joaquim construíra.

Essa viagem, ao que se sabe, foi sugerida pelo próprio ministro, envolvido na época em uma cruzada para aumentar o número de aviadores militares e civis no país.

No Rio, o avião de Joaquim – batizado Cidade de Pelotas – foi submetido a inúmeros testes e aprovado integralmente, mas a licença para a criação da fábrica jamais seria concedida.

Na capital, Joaquim reuniu-se a sua esposa, Elda Neutzling Fonseca, que viajara até lá de navio. No total, o casal Fonseca permaneceu quarenta dias no centro do País. Voaram juntos no F2 a Minas Gerais e Espírito Santo.

Carta em inglês

O ponto mais nebuloso da história do incrível Joaquim e de suas máquinas voadoras ocorre ainda em 1943 ou no começo de 1944, quando ele teria recebido uma carta do Governo informando-o de que seu avião não poderia ser fabricado em série.

O detalhe intrigante é que essa carta estaria escrita em inglês, conforme assegura o filho do piloto, Joaquim da Costa Fonseca Neto.

Não existe mais, que se saiba, um exemplar dessa misteriosa e espantosa carta. É lamentável porque ela representaria, talvez, um caso único no mundo: o de uma nação soberana que envia a um dos seus cidadãos, que fizera uma solicitação, uma correspondência em língua estrangeira.

Mas, num país onde surpresas estonteantes nunca se esgotam, é até razoável supor que os burocratas do Rio de Janeiro nem sequer se deram ao trabalho de verter para a língua-mãe uma carta em inglês que teriam recebido de alguém interessado na morte da futura fábrica gaúcha de aeronaves.

Desenho de Danilo Zasimowicz, baseado no avião F-2, construído por Joaquim Fonseca em Pelotas-RS – Acrílico sobre tela. Foto: pelotascultural.blogspot.com

Antiaéreos

Joaquim, que frequentemente recorria à imprensa para divulgar o seu sonho aeronáutico, denunciou em muitas entrevistas aqueles que chamava de “antiaéreos”, pessoas importantes ou grupos de interesse, localizados no Rio de Janeiro, que não queriam saber da produção de aviões no Brasil.

“Para conseguir a licença para continuar a fabricação, encontrei e continuo a encontrar os maiores obstáculos, não da parte dos meios oficiais, mas dos a eles ligados”, disse Joaquim, referindo-se aos “inimigos da aeronáutica no Brasil”. Afirmou, porém, que continuaria a lutar “até que não existam mais antiaéreos e então se possa iniciar a fabricação de aviões para o Brasil”.

A insistência em erguer uma fábrica de aeronaves fez com que Joaquim fosse tachado de “comunista e subversivo”, diz seu filho.

Em meados dos anos 1940, preocupado com possíveis represálias, Joaquim teria se refugiado preventivamente em uma chácara no interior de São Lourenço do Sul, onde ficou recolhido por um semestre.

O interesse da imprensa

O sonho aviatório de Joaquim está muito bem documentado em jornais de Pelotas, Porto Alegre e Rio de Janeiro, porque os jornalistas se interessavam vivamente pelo homem que construiu no porão de sua casa um primeiro aeroplano e que com ele voou sobre a cidade. E que, depois, fez um segundo, mais aperfeiçoado, e nele viajou até a então capital do País.

Em sua maioria, esses repórteres divulgaram a imagem de um romântico piloto que, sem grandes conhecimentos técnicos e arrostando grandes dificuldades materiais, conseguira montar seus aviões em uma cidade interiorana nos confins da pátria.

“É, sobretudo, um idealista”, registrou um jornal. “Sua crônica tem algo dessas dedicações legendárias em que tudo se sacrifica ao objetivo visado”.

Na mesma linha, afirmou outro veículo: “É interessante acentuar que o senhor Fonseca Filho jamais frequentou cursos de mecânica aviatória, sendo sua obra o produto exclusivo de invulgar tenacidade a serviço de uma inteligência esclarecida e de um idealismo sadio”.

Essa imagem, porém, era negada por Joaquim. “Sempre fui um entusiasta da aviação e procurei manter-me a par do seu progresso crescente. Após estudos prolongados em tratados de diversos autores e nacionalidades, tive a ideia de construir um avião, tendo sido frequentemente tachado de visionário”.

“Deixando a Escola de Aviação, voltei a Pelotas e comecei a ler tratados técnicos de aviação. Nacionais e estrangeiros. Lia tudo. Sozinho, com verdadeira obstinação”.

Consciente do poder dos jornais, Joaquim procurava-os seguidamente. E sempre deixou bem claro que, mais do que um aventureiro, era um empreendedor, cuja meta principal era a instalação de uma fábrica de aeronaves.

O pai imigrante

O homem que construiu dois aviões nos cafundós meridionais da América Latina, em plena Segunda Guerra Mundial, não surgiu do nada. O engenhoso Joaquim nasceu em berço que cheirava à gasolina e graxa. Seu pai era também um apaixonado por máquinas.

A aventura dos Fonseca de Pelotas começa na virada para o século XX quando chega à cidade o português Joaquim da Costa Fonseca, natural da Póvoa do Varzim. Sabe-se que esse ancestral, então com 25 anos, trouxe consigo algum dinheiro. Inicialmente, montou um bar. Pouco depois, passou para uma padaria. E, ao cabo de uns poucos anos, ingressou no ramo da mecânica, sua verdadeira vocação. E avançou a seguir para a revenda e manutenção de automóveis.

Segundo a crônica familiar, mesmo sem dominar o inglês, o patriarca lusitano viajou aos Estados Unidos no começo dos anos 1920, ocasião em que se apaixonou pelos automóveis. Solicitou então a Henry Ford licença para instalar uma revendedora de veículos na cidade de São Lourenço do Sul, onde mantinha uma oficina. A revenda Ford dos Fonseca começou a funcionar em 1925, comercializando primeiramente os modelos T, conhecidos como “Ford de bigode”.

Joaquim construiu os “ônibus” que funcionaram na linha pioneira entre Pelotas e São Lourenço, adaptando modelos A da Ford, de 1929, cortando-os e alongando-os, para que transportassem mais passageiros.

Indústria americana

Joaquim nasceu em 4 de agosto de 1909. Era o terceiro filho, depois de Gilberto e Adalberto. Viajou pela primeira vez aos Estados Unidos com apenas vinte anos, encarregado pelo pai de comprar peças para reposição. Faria muitas outras visitas em anos posteriores.

A viagem até Detroit era muito demorada porque Joaquim ia primeiramente a Portugal, de onde seguia para Nova Iorque. Caso fosse feita a partir do Brasil, a viagem seria mais cara.

Nas muitas visitas que fez aos Estados Unidos ao longo dos anos 1930, Joaquim impressionou-se com a expansão industrial americana. Foi certamente nessas incursões que teve acesso a informações sobre a construção de aviões.

A corrida pioneira

A paixão de Joaquim pelas máquinas o levou inicialmente às corridas de automóveis. Em 1931, foi o vencedor da primeira corrida de Pelotas e Porto Alegre. Melhor dizendo, do Retiro à Guaíba, porque não havia ainda uma ponte que desse acesso à capital. Nem uma que ligasse a Princesa do Sul ao Retiro.

Os duzentos e poucos quilômetros foram palmilhados em 4 horas e meia, descontada a demorada travessia do rio Camaquã pela Balsa da Pacheca.

Joaquim levava como copiloto Ovídio Borck. A principal função desse robusto cidadão de ascendência germânica era erguer o carro com a força dos braços para que o piloto pudesse trocar os pneus eventualmente furados.

Mas o fator determinante para a vitória de Joaquim nessa desembestada incursão por precárias e sinuosas estradas de terra não foi nem a força dos 50 cavalos do Ford Modelo B, 1929, nem o muque do seu auxiliar. Foi a malícia de alguém que conhecia bem o serpenteante e acidentado caminho.

Ao alinhar para a partida, o futuro aviador percebeu a presença de uma ameaçadora Bugatti. Sentiu que ali estava o inimigo a ser batido. Assim, desde a partida, tratou de colar na macchina italiana. Para pressionar ainda mais, acionava insistentemente a estridente buzina que instalara na dianteira de seu carro.

Havia num dos trechos iniciais, no chamado Passo do Valentim, uma pequena ponte que só era utilizada nas cheias. Costumeiramente, os automóveis passavam por baixo dela. Naquele dia, porém, sabendo que o nível do arroio estava um pouco mais alto, Joaquim grudou atrás da Bugatti de mão cravada na buzina. Resultado: a acossada baratinha italiana entrou no curso d´água, avançou uns poucos metros e teve seu motor coberto pela água. Enquanto isso, Joaquim freava bruscamente e tomava o caminho lateral que o levaria a passar por cima da ponte.

Escola de Aviação Militar

Joaquim dizia que sua paixão pelos aviões vinha desde a infância. Seu primeiro passo efetivo nessa direção ocorreu, sem dúvida, em 1930, quando ele decidiu alistar-se para prestar o serviço militar obrigatório na Escola de Aviação Militar, do Campo dos Afonsos, no Rio de Janeiro. “Com 21 anos bati às portas da Escola de Aviação”, afirmou ele certa vez. “No serviço militar, tive oportunidade de me familiarizar com aviões, viver a aviação”.

Em um artigo intitulado “Imaginou e fez”, em uma publicação sem data, em veículo não identificado, um certo coronel Schwanke registra que Joaquim teve um mentor na Escola de Aviação Militar: “Lá se encontrou com o gaúcho Rodrigues, sargento mecânico, e passou a trabalhar com ele nas oficinas. Era um soldado diferente, excêntrico, obstinado numa ideia: construir aviões. Travou amizade com oficiais e passou a frequentar, como ouvinte, as aulas de engenharia aeronáutica. Quando deu baixa, voltou à sua cidade natal – Pelotas – e passou a ler e a se aperfeiçoar. Entrou para o Aeroclube e se brevetou piloto”.

F1

Joaquim, que desde o início dos anos 30 pensava efetivamente em construir um avião, começou a trabalhar no F1 em 12 de fevereiro de 1939, na sua casa, na rua Gonçalves Chaves número 516.

Em 19 de abril de 1939, em “um esplêndido furo de reportagem”, o Diário Popular noticiou que Joaquim da Costa Fonseca Filho estava construindo “no porão de sua residência um pequeno avião”.

A nota contrariou o aeronauta que não queria que sua obra fosse divulgada antes de ser posta à prova. Temia um insucesso.

O primeiro avião ficou pronto em dez meses e meio de trabalho. O voo inaugural ocorreu em 29 de dezembro de 1939, como registrou o Diário Popular: “Ontem, pelas 13 horas, sobre o aeroporto municipal, o avião construído pelo senhor Fonseca decolou e fez algumas evoluções, pilotado pelo senhor Waldemar Keller”.

O coronel Schwanke registrou a saga desse aeroplano pioneiro: “O que ganhava de dia, numa modesta oficina de automóveis, gastava de noite no avião todo de madeira e algodão envernizado. E com um motor Ford de automóvel Modelo B, de 50 cavalos e rodas de bicicleta, fez um voo experimental de 20 minutos a 300 metros de altura. Neste aparelho, com a velocidade de 100 quilômetros horários e com autonomia de voo de 2 horas, voou mais de 30 horas. Como medida de segurança, voava baixo, em etapas de 80 quilômetros, sobre a planície ou às margens da Lagoa dos Patos. Eram voos solitários porque o peso do motor não lhe permitia levar passageiro. Cada voo era de estudos e por isso o avião sofria constantes modificações”.

Já por ocasião do seu voo pioneiro, Joaquim anunciou que tinha em mente os planos para um futuro avião. “Esperamos dentro de poucos meses apresentar o nosso segundo tipo para ser construído em série. O modelo já está completamente estudado e obedece à técnica moderna. As plantas já estão prontas e serão dentro de pouco apresentadas”.

Amigos abnegados

Embora os jornalistas tendessem a vender a imagem do herói solitário, Joaquim sempre ressaltou a ajuda de companheiros. “Tenho lá em Pelotas um grupo de amigos que trabalham diariamente na minha oficina. São uns abnegados que visam a grandeza da aviação brasileira. Temos trabalhado, por assim dizer, à força do carvão de pedra”.

Complexo de vira-lata

Em muitas de suas entrevistas, Joaquim combate a tendência que os brasileiros teriam para o negativismo e a autodepreciação. Em suma, um sentimento de inferioridade que Nelson Rodrigues chamaria, depois, de “complexo de vira-lata”.

“Esses aviões que estão saindo de nossas mãos indicam que nós podemos construir”, afirmou Joaquim. “É, porém, preciso que terminemos com essa mentalidade de que o que é nacional não é bom. Temos inteligência como qualquer outro povo e possuímos recursos bem maiores do que muitos. O que nos entrava é unicamente essa mentalidade. Em questões em que estão os interesses da indústria brasileira, sejamos bairristas. Demos ao que é nosso o valor que de fato possui”.

Cidade de Pelotas

Joaquim iniciou a elaboração do segundo aparelho provavelmente em 1941. Desmontou integralmente o F1, mas não reutilizou nenhuma de suas partes. Queria fazer um avião com linhas aerodinâmicas mais aperfeiçoadas e de motor mais potente.

“O protótipo foi estudado”, disse. “As boas qualidades desenvolvidas e os defeitos alijados. E foi desses acurados estudos que surgiu o F2”.

Concluído no começo de 1942, o segundo avião voou até Porto Alegre, onde foi submetido a testes para obtenção de licença especial do Departamento de Aeronáutica Civil.

Em entrevista publicada em 4 de fevereiro daquele ano, Joaquim ressaltou que seu avião, destinado ao treinamento de pilotos, fora construído com matéria-prima nacional, com exceção do motor e dos tubos de aço.

Feito a partir de um desenho próprio, único, tinha dois lugares e duplo comando. Movido por um motor Franklin, de 80 cavalos, tinha envergadura de 10m50 e 6m68 de comprimento. Monoplano de asa alta, pesava 340 quilos e podia carregar até 250 quilos. Sua autonomia lhe permitia voar por cinco horas a uma velocidade de 135 quilômetros horários. Utilizava rodas de avião e seu cavername era metálico. Feito à noite e nas horas de folga, seu custo representava 40 por cento do preço de um avião semelhante importado.

Rio de Janeiro

Um ano e muitos voos depois, no dia 10 de abril de 1943, no Rio de Janeiro, o avião foi apresentado ao ministro Salgado Filho que, segundo jornais da época, “demorou-se na apreciação do F2, tendo se informado dos detalhes da sua construção”.

O ministro da Aeronáutica estava acompanhado pelo jornalista Assis Chateaubriand, comandante dos Diários Associados e o maior incentivador da campanha “Dê asas à juventude”, que visava dotar o Brasil de aviões, aeródromos e pilotos.

Uma curiosidade: o primeiro dos aviões a ser doado por essa campanha, chamado Regente Feijó, foi entregue, em 22 de março de 1941, ao Aeroclube de Pelotas.

O avião de Joaquim foi submetido a muitas provas, técnicas e práticas, por funcionários da Aeronáutica. Passou até mesmo por três perigosas manobras em parafuso de oito voltas. Os técnicos oficiais começaram alegando que as plantas do avião, essenciais para a homologação, não estavam de acordo com as normas de construção da aeronáutica norte-americana.

Depois argumentaram que a madeira brasileira não teria qualidade para ser empregada em aeronaves. Por fim, apontaram uma fragilidade da cauda, que não resistiria a ventos fortes. Joaquim subiu na traseira do seu aparelho e nela pulou várias vezes para demonstrar a resistência do material utilizado por ele.

O F2 portou-se bem em todas as experiências, voando 20 horas com perfeito rendimento. Mostrou-se um modelo apropriado para turismo e treinamento leve, podendo ser aproveitado para treinamento secundário e introdução à acrobacia.

Amargo regresso

Em 9 de maio de 1943, o Diário de Notícias, de Porto Alegre, noticiava o regresso ao Sul de Joaquim Fonseca, “premiado pelos seus esforços”, pois seu avião teria sido “aprovado, com elogio, pelo Ministério da Aeronáutica”. O voo de retorno, já na companhia de sua esposa, foi realizado em apenas 11 horas.

Começa então a desgastante espera pela licença para a fabricação.

A fábrica

Joaquim não perdia ocasião de afirmar seu interesse pela aviação e pelo desenvolvimento do transporte aéreo. “A época é do avião”, disse ele certa vez. “É o espírito da época. Se podemos construir aviões, por que não explorar este ramo de atividade? É já uma indústria nascente e o Brasil precisa construir os seus aviões. Quando digo nós é porque um grupo de pessoas esclarecidas e de grande descortínio… já se reuniu para a instalação, nesta cidade, de uma fábrica de aviões, a título de ensaio. Estamos na época da possibilidade de grandes negócios, o que nos demonstra a criação, por toda parte, de aeroclubes. O avião será, dentro em pouco, o veículo preferido e generalizado. E Pelotas estará, em futuro não remoto, em condições de fornecer material aviatório para uma parte pelo menos do Estado”.

Capital

O capital para a indústria aeronáutica pelotense seria coberto por pessoas ligadas ao Aeroclube de Pelotas, dizia Joaquim. Em entrevista, ele destacou “a boa vontade e o espírito de patriotismo de diversos capitalistas pelotenses, à frente dos quais se encontra o senhor Carlos Farias Guimarães, que me ofereceu o capital necessário para a montagem da fábrica de acordo com os meus ideais”.

Joaquim esclareceu, porém, que não aceitaria esses recursos enquanto existissem “as dificuldades que tenho encontrado, até agora, em meu caminho, isto é, o desinteresse e a oposição”. Ele se referia mais uma vez aos misteriosos e poderosos inimigos de uma indústria aeronáutica puramente brasileira.

Segundo Joaquim, seria possível montar uma fábrica que construísse um avião por mês. Fuselagem, asas e revestimento utilizariam exclusivamente matéria-prima local. Com um capital de mil contos, os aviões seriam feitos com motores importados. Se os investimentos chegassem a 11 mil contos, seria possível fabricar até mesmo o motor em Pelotas.

Oficina Fonseca

Reportagens dos anos 1940 mostram que a oficina mecânica dos Fonseca era muito diferente do modesto laboratório descrito pelos jornais. Os funcionários, que eram contados em dezenas, estavam familiarizados com a aviação porque muitos aparelhos eram nela consertados.

Além da oficina de reparo de automóveis e aviões, nos anos da Segunda Guerra, em decorrência da falta de combustível, os Fonseca começaram a fabricar aparelhos de gasogênio, que produziam gás combustível para alimentar motores de combustão interna, convertendo matérias-primas sólidas (madeira e carvão) em gás.

Aeroclube

Em plena Segunda Guerra Mundial, o clube de aviadores de Pelotas reunia muitos jovens que, segundo a imprensa da época, “consideravam voar um lazer romântico”.

Joaquim foi o primeiro aluno do Aeroclube de Pelotas a fazer um voo solo. E era considerado um dos mais hábeis pilotos da cidade, tendo vencido uma competição de navegação aérea realizada na Semana da Asa.

O fim do F2

Em 1945, Joaquim vendeu o F2. Por 45 mil cruzeiros, informou o coronel Schwanke.

Com o seu estilo direto e objetivo, Joaquim respondeu assim, em março de 1946, a um jornalista do Diário Popular que lhe perguntou sobre o fim do Cidade de Pelotas:

– Vendi há tempos. Está prestando serviços ao Aeroclube de Ponta Grossa. Em janeiro do ano passado, viajando nele para o Rio de Janeiro, e tendo feito escala em Curitiba, ali entrei em contato com os membros do Aeroclube de Ponta Grossa, que me propuseram a compra do Cidade de Pelotas, alegando que seu Aeroclube estava com falta de aparelhos para treinamento de pilotos. A principiei, relutei em me desfazer do aparelho, mesmo porque julguei ser para mim uma maçada ter de continuar minha viagem por terra. Entretanto a proposta foi boa e resolvi de imediato a venda, pensando que de qualquer forma depois faria outro, de maior velocidade.

Esse terceiro avião – totalmente de alumínio, com asas abaixo da fuselagem e que voaria a 200 quilômetros por hora com quatro pessoas, permanecendo até cinco horas no ar – jamais saiu do papel.

Mágoa

Quando vendeu o F2, Joaquim já estava envolvido com a invenção de máquinas e ferramentas para a indústria de surdinas e silenciadores da família, a Guarany, que funciona até hoje. Mas para sempre guardaria uma mágoa profunda pelo fato de não ter podido construir sua fábrica de aviões, garante seu filho.

Brincalhão

Como era o homem Joaquim?

Segundo Joaquim da Costa Fonseca Neto, o piloto era bem-humorado e brincalhão no trato com os filhos. Mas rigoroso na cobrança de bons resultados no estudo. E exigia que todos estivessem à mesa nos horários sagrados das refeições, quando falava empolgado das máquinas em que estava trabalhando na época ou que pretendia construir.

Joaquim deitava-se tarde, por volta das duas da madrugada. À noite, gostava de desenhar máquinas e ferramentas. Levantava-se por volta das nove horas. E sesteava todos os dias. O vinho era obrigatório nas refeições. Como a maioria dos homens do seu tempo, fumava. E era um bom garfo.

Faleceu em 12 de julho de 1968, 22 dias antes de completar 59 anos.

Renascimento

Joaquim da Costa Fonseca Filho renasceu em 1984. Como canção.

Aos 22 anos, morando em Porto Alegre, começando sua trajetória musical, Vitor Ramil escutou pela primeira vez a história de Joaquim, que lhe foi contada por um neto do piloto, Alexandre Fonseca, baterista.

Impressionado com a saga do homem que construíra dois aviões em Pelotas, o jovem poeta compôs “Joquim” – leia-se Diôuquim – uma extensa balada, de 8 minutos e meio, que acabaria por despertar um forte interesse pela vida e obra do piloto.

Na época, Vitor estava interessado em versionar uma canção de Bob Dylan – intitulada “Joey”, que conta a história de um encrenqueiro “rei das ruas, filho do barro” – criando para ela um personagem novo e brasileiro, baseado em alguém real.

Para compor essa balada, que tem tanto do clima de um romance policial como de uma trama política, Vitor inspirou-se livremente, além de Joaquim, na vida do escritor Graciliano Ramos, que, perseguido pela ditadura Vargas, esteve preso na Ilha Grande. Construiu então “o louco do chapéu azul”, um misto de inventor e ativista político, algo que Joaquim nunca foi.

“O que não é do Joaquim ou do Graciliano (prisão política, regime meio de escravidão na Ilha) ou do Joey do Dylan (morto a tiros) é pura invenção minha (crise depressiva, chapéu azul, discursos, Artaud, Rimbaud, Breton)”, explica o compositor.

O personagem da balada sofre “muita pressão” porque o negócio no qual está envolvido movimenta “muito dinheiro”. Sobre esse aspecto, diz Vitor: “Na verdade meu palpite sempre foi o de que algum lobby de empresa aérea estrangeira, mais especificamente norte-americana, se impôs. As tais questões estratégicas alegadas, se é que houve tal alegação, devem ter sido papo furado para alguém embolsar algum em detrimento da indústria nacional. Já vimos este filme muitas vezes”.

Mais de trinta anos depois do ter criado o seu inesquecível Joquim, comenta Vitor Ramil: “Graças ao Joaquim, Pelotas poderia ter tido a primeira fábrica de aviões do Brasil. Uma nova vocação econômica poderia ter surgido na cidade no momento certo. Acho que até hoje não está bem claro o motivo de terem negado a ele a licença para construir aviões. Na minha letra isso ficou como um enigma, apenas sugerindo questões econômicas e políticas”.

*Jornalista e Escritor.