ARTIGO – MEMÓRIAS DE UM ENCRENQUEIRO – PARTE 2

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Carlos Eduardo Behrensdorf é jornalista, pelotense e reside em Brasília.

Satanás

Carlos Eduardo Behrensdorf*

O TT Soares Dutra zarpou do Rio de Janeiro rumo ao Norte. Atracou em Recife. Na primeira noite, me escalaram para patrulhas noturnas, no policiamento a restaurantes, bares, botequins, biroscas e bordéis. A patrulha era mista: soldados do Exército e Fuzileiros Navais. Na zona do meretrício, operávamos em duplas que se revezavam para inspecionar os puteiros.

Era proibida a presença de soldados por lá. O comandante da patrulha era um 1º sargento Fuzileiro Naval, religioso pra lá de ortodoxo. Não entrava nos bordéis. Sobre os cinco ou seis que patrulharíamos caiu o grito de alerta dele: “Cuidado! Satanás está lá dentro! Não o escutem! Não se contaminem”. Confesso que num ou outro randevu deu para cruzar a perna, afrouxar o cinto, conversar com as gurias e beber uma branquinha por conta da casa.

Naquela noite, o Inominável se fez ausente. Ou ele estava mudo ou eu estava surdo. O patrulhamento foi calmo, salvo um ou outro cascudo ou puxão de orelha em soldado saliente. Deixamos Recife e o Brasil. Lá fomos nós, qual cisnes brancos em noite sem lua. Escalas: portos de Las Palmas, na Gran Canária; Casablanca, Marrocos; Málaga e Barcelona, Espanha; e de lá atravessamos o Mediterrâneo para Port Said, Egito.

Em Las Palmas todas as portas se fecharam para nós, exceto as de alguns bares. Onde ancorei, o dono me contou: o 9º Contingente, quando retornava ao Brasil, atracou na ilha. Houve uma esculhambação geral. Por isso, nossa farda verde oliva provocava a maior barulheira de portas e janelas se fechando.

Sapatos da Procópio
Em Casablanca, não encontrei Ingrid Bergman. Em Málaga, entrei numa casa de flamenco – La nueva taberna gitana – e saí pela manhã em dois cabriolés, pequenas carroças, espécie de táxi local. No da frente, coloquei meus sapatos de cromo comprados na Casa Procópio, em Pelotas. No outro, atrás, sozinho, eu ria de mim mesmo. Em que filme vi cena parecida?

Em Barcelona, Perceu e eu caprichamos. Seleto consumo de vinhos da Rioja, flamenco em taberna e, na rua, charutos dominicanos y otras cositas más. Quase perdemos o navio. Quando o táxi nos deixou no cais, olhei o TT Soares Dutra e tremi: todos estavam em forma, na proa e na popa, prontos para partir. Puxei o Perceu pelo braço e avisei: “Tigrão, tá todo mundo nos olhando”.

Subi a escada mais oscilante de toda a minha vida. Como mandava o momento, virei de frente para a bandeira, bati uma continência de gabarito e me mandei. A última frase que ouvi foi uma ordem vinda do oficial-de-dia: “Anota os números desses dois”. Atravessamos o Mediterrâneo, chegamos a Port Said, desembarcamos, pegamos o saco de viagem, embarcamos no trem, passamos pelo Canal de Suez e rumamos para a Faixa de Gaza. Ao chegar ao Comando do Batalhão, recebemos o armamento e desfilamos diante da oficialidade. Não é fácil acertar o passo na areia.

Quem era da 8ª Companhia, ficou na sede do Batalhão, numa boa. Quem não era foi transportado em caminhões para a fronteira. Num deles estava eu. Do Rio Grande do Sul só havia um parceiro, de Bagé: Manuel Belmiro dos Santos. Nosso destino: o 3º Pelotão da 7ª Companhia de Fronteira, o Pelotão Paraná.

Segue…

*Jornalista