A MISTERIOSA MORTE DE MIGUELA DE ALCAZAR – 9

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A MISTERIOSA MORTE DE MIGUELA DE ALCAZAR

Lourenço Cazarré e Pedro Almeida Vieira*

28. Especulação sobre a existência de um mundo ainda pior

Enquanto Batota, magoado com o que eu dissera, fazia beicinho de choro, eu me concentrei na observação do rosto de Miguela de Alcazar y Casas de Bourbon.

A velha tinha os olhos abertos, como se realmente estivesse lendo. Pareceu-me serena, embora fosse difícil detectar qualquer expressão num rosto com tantas rugas.

Uma mantilha preta, rendada, cobria-lhe metade da cabeleira incrivelmente negra. Milagre das tinturas modernas.

Ao observar o pescoço dela meu sangue gelou. Notei algo que me pareceu uma minúscula sarda isolada. Olhando bem de perto, percebi que era vermelha demais para ser sarda. Então me caiu a ficha. Aquilo era uma gotinha de sangue, bem em cima de uma grossa veia azulada. Percebi a seguir que, no meio da gota, havia um furinho quase invisível.

Mil e uma hipóteses explodiram no meu bestunto. Pensei inicialmente em mordida de cobra venenosa. Mas só se fosse cobra desdentada porque as mordidas delas sempre deixam dois furos.

Pensei depois em uma seringa. Uma injeção de veneno? Mas por que no pescoço e não num braço?

Mas aquilo poderia ser também uma mordida de mosquito coçada até sangrar…

Devorei livros policiais em demasia. Como conheço todos os truques, meu cérebro fervilhava. As hipóteses se sucediam na minha mente com a rapidez de bombeiros embarcando em um caminhão de sirena ligada.

– Que fazemos com o raio deste bilhetinho? – o português cortou-me as reflexões. – Entregamos ao delegado?

– Vamos guardá-lo conosco. Ele funcionará como chamariz para atrair o assassino, se é que houve assassinato. Quando souber que o bilhete está conosco, o matador da espanhola virá para cima de nós, e, aí, nós o pegaremos…

– Ou ele nos mata antes – completou Batota, assustado. – Ao descobrir que o bilhete está conosco, poderá mandar-nos desta para melhor.

– Ou pior – ponderei. – Reconheço que nosso mundo não é dos melhores. Tem guerras, miséria e muita fome. Mas eu, como pessimista fanático, penso que, se existir outro mundo, ele deve ser bem pior.

– Deixa-te de filosofanças! – atalhou-me o gerente do hotel. – Permitirei, agora, que os escritores examinem a cena do crime. Mas vou ficar atento. Aquele que olhar a Bíblia com maior interesse passa a ser o suspeito número um, porque, de certeza, estará a procurar o bilhetinho.

– Cuidado para não acusar inocentes! – eu o adverti. – O mais provável é que todos se interessem por esta Bíblia, que parece muito antiga e certamente é de uma edição rara…

Não pude concluir a frase. Tive que correr atrás do português, que, em largas passadas, voltava ao salão.

  1. Gaúcho macho limpa lágrima com tapa

Três dos escritores – Sim et Non, Dax e Foo – estavam à mesa rabiscando. Certamente já esboçavam romances baseados na misteriosa morte de Miguela de Alcazar.

Pensativas, de cabeça baixa, Águeda Christine e Fedorova caminhavam ambas com as mãos às costas.

Com o nariz quase roçando a parede, aparentemente interessado em descobrir falhas na pintura, Bugres recitou:

– Todos os corredores nos conduzem a um labirinto, onde nos perderemos. Nós e o nosso outro eu. Às vezes morremos nós; às vezes, o outro. Sempre alguém acaba definhando na solidão dos labirintos.

– Bah, tchê, não se trata só de uísque ruim – gritou Dax Chamber. – O castelhano se faz de louco pra passar bem.

Dax era grande conhecedor de uísque. Seus olhos permanentemente raiados, sua papada vermelha e seu bafo de tigre eram sinais de sua intimidade com o licor escocês. Segundo notícia que li num tabloide inglês, não se passava um só dia sem que ele secasse duas garrafas. De litro.

Parado na porta do salão, Batota ergueu a voz:

– Venha, senhor Dax! Chegou a vossa vez de investigar o quarto de dona Miguela.

O americano era gordo do tipo gelatinoso. Recoberto por uma larga camada de banha trêmula, mais concentrada na cintura, ele tinha braços muito finos e compridos, que nasciam de ombros estreitos. Visto de costas, lembrava um losango.

Apesar de ter escrito mais de cem obras, Dax era famoso especialmente por três livros: Atire antes e pergunte depois, Não abra a porta nem para o carteiro e Chumbo não derrete como gelo.

– Como é que o senhor aprendeu a falar tão bem o gauchês, seu Dax? – perguntei, quando chegávamos ao apartamento 1313.

– Foi em Nova Iorque, tchê. Conheci um gaudério de Camaquã que vendia churrasquinho pelas esquinas. Me enturmei com ele. Aprendi a falar até com o jeito de maconheiro de Porto Alegre, mas me amarro mesmo é no sotaque do pessoal de Uruguaiana.

O americano limpou a garganta com três pigarros e recitou com o carregado sotaque do povo do Pampa:

Virabosta é preguiçoso,

Mas velhaco passarinho;

Pra não fazer seu ninho,

Se apossa do ninho alheio;

Este há de, segundo creio,

Seguir o mesmo caminho.

– Que diabo é isso? – perguntou o Batota. – Também estará a enlouquecer o senhor Chamber?

– Ele recitou “Antonio Chimango” – expliquei, comovido. – É o mais belo poema da minha terra.

Uma furtiva lágrima escapou-me do canto do olho para a bochecha. Limpei-a com um gesto viril, um tabefe. Depois, com voz trêmula, dirigi-me ao americano:

– Sua pronúncia, seu Dax, é louca de especial.

  1. Procurando alguém que sinta vertigens

Largas passadas levaram o americano rapidamente para junto do corpo da espanhola.

De saída de bola, ele enfiou um par de luvas de borracha, que retirou do bolso da calça. E, sem que perguntássemos, explicou:

– Uso luvas por questão de segurança. Vocês, cucarachas, não gostam de nós, gringos. Se eu deixasse impressões digitais aqui, vocês se serviriam delas, depois, pra me incriminar. Seria a glória para vocês, se eu fosse preso nesta cidade. Só assim um país de quinta categoria como o Brasil poderia ser citado no New York Times.

– Temos tradição em incompetência e corrupção, mas não em canalhice! – reagi em voz alta. De vez em quando, como todo imbecil, sofro uns ataques de nacionalismo. – Além de paranóico, o senhor é megalomaníaco. Nós, brasileiros, somos chegados a um jeitinho, é verdade. Preferimos a praia ao escritório, sim. Mas não somos, de modo algum, cretinos.

Indiferente à minha indignação patrioteira, Dax afastou-se do cadáver e foi explorar a vasta janela envidraçada, da qual se avistava o jardim do hotel. Só então notei que havia alguns galhos roçando a vidraça. O americano tentou abrir a janela, mas não conseguiu.

– A janela está perra por causa da ferrugem – explicou Batota.

– Entonces o animal não passou por aqui – comentou o escritor, e tomou notas numa cadernetinha.

– Animal? – perguntou Batota, espantado. – O senhor acredita que um bicho possa ter matado a dona Miguela?

 – Nada disso, tchê – Dax voltou-se para o gerente do hotel. – Animal, na elegante linguagem dos gaúchos, é o mesmo que ser humano, gente. Na verdade, eu me referia ao sujeito que fez a limpeza do apartamento. Se ele tivesse passado por aqui, a janela não estaria emperrada.

– O que o senhor quer dizer com “sujeito que fez a limpeza”? – perguntei. – O senhor se refere aos empregados do hotel que fazem a faxina do apartamento ou a um possível ladrão que, além matar dona Miguela, teria roubado alguma coisa?

Intrigado, o americano me olhou de alto a baixo. Ou não entendera a minha pergunta ou a entendera bem demais e ficara impressionado com a minha argúcia.  Não me respondeu. Anotei este detalhe na minha caderneta.

Indiferente ao que se passava entre Dax e eu, Batota comentou:

– É melhor mesmo que a janela fique permanentemente trancada, pois o quarto possui ar-condicionado.

– Buenas, se a janela pudesse ser aberta, a gente teria que encontrar logo uma pessoa que sente vertigens – comentou Dax.

– Por quê? – indaguei. – Ora, se uma pessoa sente vertigens, é óbvio que ela não se aproximaria da janela.

– Mas é exatamente por isso, bagual! – explicou-me o americano. – Precisaríamos encontrar essa pessoa para tirar o nome dela da lista dos suspeitos.

  1. O repórter sucumbe à doença infantil do antiamericanismo

Um a zero para o americano. O danado tinha me passado a perna. Uma onda de furibundo ardor nacionalista subiu-me do ventre ao pescoço. Eu precisava restabelecer minha condição de cidadão de uma nação de espertinhos. Nós, brasileiros, é que somos especialistas em gozar a cara dos outros.

Passei a torcer para que Dax se interessasse pela Bíblia da falecida. Seria um indicativo de que ele sabia da existência do bilhetinho. Mas o americano não dava bola para o livrão. Girava pelo quarto e fazia anotações – com suas grandes mãos enluvadas – num caderninho.

– Livro muito interessante este, não é, Batota? – comentei, tentando atrair a atenção de Dax.

– Que livro, ó pá? – perguntou-me, desatento, o português.

– A Bíblia! – respondi em voz alta.

Dax, que estava analisando a arrumação da cama, mordeu a isca:

– Bíblia? Livro muito chinelão. Até meio mal escrito. Tem personagens demais, pouca ação, linguagem enrolada e enredo confuso. É obra de amador, tchê.

Não demorei em reagir à análise tão depreciativa:

– Mas é o livro mais lido e vendido em todo o mundo!

– Também, com a equipe de propagandistas que ele tem! São milhões de padres e pastores ameaçando bilhões de pessoas todo domingo. Se não lerem a Bíblia, vão virar churrasco no inferno!

Dois a zero para o gringo, reconheci.

Calado, concentrado, Dax vasculhou o gigantesco guarda-roupa, os criados-mudos e o interior do frigobar. Finalmente, voltou para junto do corpo da escritora espanhola.

– Estranhou alguma coisa, senhor Dax? – perguntou Batota.

– Muitas.

– O senhor poderia dizer-me quais.

– Não! De jeito nenhum. Vivo disso. Ganho uns trocos com esse tipo de coisa. Com base nos detalhes estranhos que percebi, escreverei um livro que se chamará Um cadáver lê a Bíblia.

– Não será pecado ganhar dinheiro com uma obra que leve esse título? – indagou o gerente do hotel.

– Bah, se a gente olha com atenção, todas as formas de ganhar dinheiro são, na verdade, variadas espécies de trapaça – filosofou Dax. – No fundo, todos nós lutamos pra acalmar o estômago. A diferença essencial é que uns poucos matam a fome com filé e a grande maioria se contenta com carne de pescoço.

– Os americanos comem todo o filé produzido no mundo – provoquei. – Deixam só a pelanca para os outros.

– E daí, tchê, qual é o teu problema? – retrucou Dax, irritado. – Por que tu não vais te queixar ao Papa?

Batota puxou-me para perto da porta e sussurrou:

– Que tens tu, pá? Sofres da doença infantil do antiamericanismo? Por que ficas para aí a chatear o senhor Chamber? Que mal te fez ele?

Também em voz baixa, respondi:

– Eu o ataco porque ele é um cara muito suspeito. Usou luvas!

– Não vejo nada de estranho que se use luvas durante uma investigação, pá.

– Raciocine, seu Batota! Digamos que dona Miguela tenha sido assassinada. Se durante a investigação forem encontradas aqui impressões digitais de Dax, ele dirá que elas foram “plantadas” e pedirá nosso testemunho. Seremos obrigados a dizer que ele usava luvas. Compreendeu? Tudo não passou de um álibi para ele se livrar de um crime que pode ter praticado!

– Porra, miúdo! – espantou-se o português. – Ou és um gênio, mais sagaz que Sherlock, ou és uma besta quadrada!

Depois de fuzilar-me com um olhar inamistoso, o americano deixou às pressas o apartamento 1313.

*Jornalista e escritor.