A Praça, os cães, os sons do passado e a sabedoria contida nos livros
Neiff Satte Alam*
Passando pela nossa Praça, senti um estranho desejo de sentar-me em um dos bancos que circundam o chafariz, bem próximo a um imponente exemplar de Pau-Brasil, plantado por Olavo Bilac, o Poeta. Fechei os olhos para ouvir os sons que emanavam deste ambiente: a água escorrendo pelas Nereidas, pelos focinhos dos cavalos e respingando sobre a lâmina d’água; os pardais em sua farra sonora, uma melodia que só a natureza empresta a nossos ouvidos; o latido dos cães que dormitavam nos degraus do chafariz.
Aprofundando o pensamento, senti os sons das pessoas transitando por uma Feira do Livro do passado; adultos e crianças folhando livros; conversas em murmúrios nas filas aguardando o momento de solicitar autógrafos de novos e antigos escritores. Pura imaginação sobre momentos de normalidade em que a Praça se enchia de pessoas ávidas em conhecimento. Hoje só restam lembranças destes momentos, mas nada impede de refletirmos sobre estes momentos, que se seguem a estes eventos.
“O chafariz da Praça Cel. Pedro Osório era o epicentro de uma fantástica cultura literária que o cercava durante a Feira do Livro. Boa parte do conhecimento impresso por renomados escritores alicerçando anônimos escritores se distribuía por milhares de folhas de papel. Centenas de pessoas circulavam pelo local, alguns folhando livros em busca de algo que mais agradasse o gosto e/ou interesse, outros simplesmente passeavam por entre as bancas dos livreiros indecisos quanto aos propósitos da visita, mas já com um interesse latente, assim como o que se observava nas crianças que, entre algazarras e gritos, começavam a sentir o clima de leitura que predominava naqueles dias de Feira”.
“Nas escadas do chafariz, na tarde do último sábado da Feira, sob um sol ainda ameno de primavera, vários cães dormitavam pachorrentamente como se todos aqueles humanos não existissem, pois a praça era deles. Os humanos eram apenas eventuais “habitantes” daquele espaço. Algumas pessoas fotografaram aquela cena um tanto surrealista: uma matilha dormindo em meio a Feira do Livro; as crianças transitavam por entre os cães sem machucá-los e os considerando como algo normal naquela paisagem; algumas pessoas iniciaram uma manifestação de repúdio, inicialmente de forma verbal, depois passaram a uma ação mais efetiva para expulsar os animais (quem seriam os animais, mesmo?)”.
“Os cães, na sua forma própria de linguagem, iniciaram uma série de latidos, ganidos e grunhidos que não podiam ser entendidos pelos seus detratores, mas que tinham uma tradução possível para os especialistas na linguagem dos cães: reclamavam das agressões sofridas, do desconhecimento de que eram os únicos que não abandonavam as crianças de rua, os mendigos, que inclusive lhes davam comida; tentavam explicar, sem sucesso, que naquele mesmo ambiente existiam dezenas de livros que defendiam os direitos dos animais, que evidenciavam a importância da convivência entre humanos e os irracionais”.
“A espécie humana, ao mesmo tempo que expõe sua alta intelectualidade deixa a mostra seus instintos mais primitivos. No mesmo local que se constitui em uma passarela para prostitutas, mendigos, atravessadores, desocupados e cães vadios durante todo o ano, fazem desfilar sua cultura literária, seu conhecimento do mundo dos seres vivos e das coisas não vivas; mostra filosofia, sociologia e psicologia que encantam a todos que se dispõem a ler e exercer a capacidade de refletir criticamente sobre a leitura, esquece-se da realidade ao ter uma overdose de ficção”.
“O que nos diferencia dos outros animais é a capacidade de dar significado a toda a informação, transformando-a em conhecimento, logo, é necessário retornarmos a praça após a Feira do Livro e iniciarmos uma reflexão sobre os cães vadios das escadas do chafariz, pois são a mostra de como tratamos os verdadeiramente excluídos enquanto nos extasiamos com as “letrinhas impressas”, mas que não nos ensinam”. “Porém, se tudo isto mudar, se utilizarmos o conhecimento para uma verdadeira inclusão, respeitando a vida e a diversidade, poderemos transformar a realidade e, então, a Praça será o lugar de uma verdadeira Feira do Livro”.
*Neiff Olavo Gomes Satte Alam é professor e integrante da Equipe Treze Horas desde o primeiro dia.