YITZHAK RABIN E MÁRIO SOARES: UM DIA DE CONVÍVIO ANTES DA TRAGÉDIA
Por Clayton Rocha
O Primeiro-Ministro de Israel foi assassinado no dia seguinte
O Ex-Presidente de Portugal, a figura central dos 500 anos do Descobrimento do Brasil, e responsável pelos maiores passos do Projeto Luso Grande do Sul, criado em Pelotas e chancelado pelas suas duas Universidades, descreveu, recentemente, em Lisboa, alguns de seus momentos mais significativos na política internacional. O Presidente Mário Soares foi ouvido, na Embaixada do Brasil, por jornalistas europeus, portugueses e brasileiros, falou às Agências France Press e Reuters, e concedeu entrevistas ao rádio, tendo falado à Rádio Difusão Portuguesa, Rádio Antena 1 e Rádio Gaúcha de Porto Alegre, cujo Diretor, Armindo Antonio Ranzolin, participou do ato, a convite da UCPEL e UFPEL.
O ex-Presidente e ex-Primeiro Ministro de Portugal fez algumas importantes considerações sobre o ex-Primeiro Ministro de Israel, Yitzhak Rabin, assassinado um dia depois de reuniões mantidas pelos dois governantes, em Tel Aviv, e ainda falou sobre o seu amigo François Mitterrand, cuja morte foi muito sentida por Soares. A seguir, trechos do depoimento do ex-Presidente de Portugal: “A visita de Estado que fiz a Israel por repetida solicitação do Presidente Ezer Weizmann realizou-se num momento político muito especial, mas que ninguém poderia prever vir a ser marcado pela tragédia. Yitzhak Rabin ofereceu-me um almoço oficial, precisamente na véspera de ser assassinado por um fanático judeu da extrema-direita. Por sinal, foi um almoço bem alegre, quase em família – porque a ele assistiram poucas pessoas-, em que o Primeiro-Ministro se mostrou muito otimista quanto ao processo de paz, na convicção, em que se encontrava, de que as maiores dificuldades tinham sido já ultrapassadas. Nesse mesmo dia à noite, o Presidente da República ofereceu o banquete final de despedida, e voltei a ficar ao lado de Yitzhak Rabin, tendo tornado a falar longamente com ele. Retirou-se antes de terminar o banquete, por ter de participar num debate na televisão israelita sobre o momento que se vivia entre Israel e a Palestina. E despediu-se de mim, desculpando-se por ter de sair a meio do jantar, reafirmando o propósito de voltar a Portugal em breve, assim que o processo de paz entrasse – como me disse – em “velocidade de cruzeiro…” No dia seguinte de manhã, terminada a visita oficial a Israel, segui para a Faixa de Gaza, como estava programado, para iniciar o que foi a primeira visita de um Chefe de Estado europeu à Palestina. Percorri de automóvel os escassos quilômetros que separam Jerusalém da fronteira de Gaza, que atravessei com grande formalidade. Do outro lado, encontrava-se Yasser Arafat para me receber, acompanhado do governo da Autoridade Palestina e do seu Estado-Maior, com alguma pompa e circunstância. A Faixa de Gaza, como o nome indica, é um estreito território ao longo do mar, de três dezenas de quilômetros de comprido e dois ou três de largo, salvo erro. Está entalado entre o Mediterrâneo e Israel e faz fronteira, a sul, com o Egito. É um território pobre, onde não há quase nada, e que Arafat procura desenvolver aceleradamente, em especial através de um grande esforço de construção imobiliária. Os palestinos foram simpaticíssimos e estavam manifestamente encantados com a visita, que esperavam pudesse contribuir para abrir caminho a contatos regulares com a União Europeia. Passei praticamente o dia todo com Arafat, a esposa e os principais ministros, com os quais almocei. Tive longas conversações durante a tarde e, depois, jantei. Foi justamente no final desse banquete que Arafat me ofereceu, na cave de um hotel ainda em construção, que notei uma agitação inusitada, e alguém, na minha presença, veio dar a notícia a Arafat que em Tel Aviv houvera um atentado contra Rabin. Inicialmente, não se sabia mais nada. Seguimos rapidamente para a pequena casa designada como a minha residência, onde havia, numa sala ao lado, um posto modestíssimo com telefones e ligações rádio. No carro blindado em que seguíamos, Arafat e eu, a rádio de Israel ia dando notícias, que o líder palestino me ia traduzindo, ao mesmo tempo que dava ordens e recebia comunicações. Quando chegamos à residência, não se sabia ainda nada: nem quem era o autor do atentado -, e, concretamente, se era árabe ou judeu, questão de suma importância -, nem quais as suas consequências quando à vida de Rabin. O nervosismo e a preocupação eram patentes, bem como as fortes medidas de segurança que começaram, imediatamente, a ser tomadas.
Perguntado sobre como estava Arafat? O que dizia? o ex-Presidente de Portugal lembrou que Arafat estava profundamente emocionado e, mesmo, perturbado: era todo o processo de paz – e mesmo a presença dos palestinos em Gaza – que tinha sido, súbita e brutalmente, posta em causa! Foi já na minha residência, no referido posto de comunicações, que soubemos, pela televisão de Israel, que Rabin fora assassinado e que o autor do crime era um judeu. O conhecimento desta última notícia provocou um certo alívio nos meus hóspedes, designadamente em Arafat. Seguiu-se, mais ou menos, uma hora de grande agitação e tensão que passei sempre ao lado de Arafat, fixados ambos na televisão, com os telefones a tocarem a todo o momento e com chamadas vindas de todos os continentes. Arafat, acompanhado dos seus consultores militares, convocou, para daí a uma hora, uma reunião extraordinária do seu Governo, que se prolongaria pela noite fora. Foi uma noite sem sono. Entretanto, veio um telefonema de Shimon Peres, para Arafat, com o objetivo de o tranquilizar quanto ao fato de a situação em Israel estar son controle, apesar de o povo israelita estar em estado de choque. Mas, do lado dos palestinos, a perturbação não era menor. Mais tarde, Peres voltou a telefonar e quis falar comigo. Disse-me que não achava conveniente que eu ficasse no dia seguinte em Gaza e que iria pôr-se em contato com Mubarak para que eu saísse de carro pela fronteira sul, para o Egito. Era também o parecer de Arafat, que já me havia falado dessa possibilidade. Em Lisboa, Antonio Guterres conseguiu entrar em contato telefônico comigo, a meio da noite, dando-me notícia da emoção imensa que abalara as diversas capitais europeias. Estava preocupadíssimo com a nossa segurança. Tranquilizei-o, e combinamos que, conforme tinham resolvido, conjuntamente, Arafat e Peres, eu partiria na manhã seguinte para o Egito onde o Falcon da Força Aérea Portuguesa me iria recolher, numa cidade fronteiriça que é uma estância balnear de grande qualidade. Foi assim a minha primeira e única noite passada em Gaza: marcada pela tragédia e pelo sopro de contingência e do efêmero que acompanham todos os projetos humanos.
Na manhã seguinte, Arafat e alguns outros membros do seu Gabinete vieram buscar-me à residência em que nos encontrávamos para nos acompanhar, por estrada, até à fronteira com o Egito. Arafat, que não dormira um minuto, estava, em todo o caso, bem mais descansado do que na véspera. A situação em Israel estava controlada. Shimon Peres assumira o Governo e marcara o funeral para o dia seguinte. Assim, entendi aproveitar o avião para ir dormir ao Cairo, como hóspede de Mubarak, e, a partir do Egito, regressar a Tel Aviv, para representar Portugal no funeral de Yitzhak Rabin.
A AMIZADE COM MITERRAND
O ex-Presidente Mário Soares, em depoimento prestado à jornalista Maria João Avillez, falou com entusiasmo sobre a figura de François Miterrand. “Entre a passagem de testemunho de Miterrand para Chirac e o seu desaparecimento, fui a França, especialmente, em finais de novembro de 1995, para visitar François Miterrand. Fui dos últimos políticos estrangeiros que ele terá recebido, no seu gabinete oficial de ex-Presidente, perto dos Invalides, onde veio a morrer. Foi uma conversa de despedida, a que assistiu a minha filha Isabel, de quem ele gostava muito, e que teve, para nós ambos, esse precioso significado. François Miterrand ensaiou a sua morte como a sua vida. Até ao fim foi, realmente, uma personagem de romance, como dele disse François Mauriac. Intrigou, dividiu e, às vezes, irritou os franceses, os quais, na sua grande maioria, demoraram a render-se-lhe, mas que, finalmente, acabaram por lhe prestar uma derradeira e comovida homenagem, quase unânime e impressionante. Nem De Gaulle despertou um tão amplo sentimento unanimista. Tive a honra rara de ser contado entre os seus amigos. A sua amizade, nunca desmentida, foi-me preciosa, em diferentes circunstâncias: no exílio, na Internacional Socialista, como Primeiro-Ministro e, depois, como Presidente de Portugal. Miterrand conhecia bem Portugal, a sua ação foi decisiva para possibilitar a nossa adesão à CEE e em vários outros momentos da vida dos dois países. Viveu, com grande sentido de solidariedade, as vicissitudes da nossa Revolução. Ainda, um mês antes da sua morte, me perguntou por várias figuras da nossa Revolução e o que lhes havia sucedido. Até ao fim foi igual a si mesmo, partilhado entre a ação política e a literatura, as duas paixões da sua vida, com a curiosidade intacta e desperta, como escreveu Odile Jacob no prefácio do seu livro póstumo De l’ Allemagne, de la France.
O ex-Presidente de Portugal disse ainda, em seu depoimento sobre Miterrand, que ele e sua filha tinham uma grande admiração pelo político e pelo homem Mitterrand. “A Isabel viveu em França uns anos, a seguir à Revolução de Abril, e teve, nessa altura e depois mais tarde, diversas oportunidades de conhecer bem François Mitterrand. A minha filha assistiu, em meu nome, ao funeral, e Danielle Mitterrand convidou-a, especialmente a ir, com a família e com raros amigos, no mesmo avião que os conduziu a Charnac, onde François Mitterrand ficou sepultado.”