Vamos nadar até a pedra?
Rubens Amador*
Nossa morte, quando a imaginamos, nos parece uma ocorrência irreal. Um dia um estranho nos preparará, inanimados, para o nosso último evento social antes de sumirem conosco para sempre. Eis um assunto chato. Tão chato como quando a síndica bate na nossa porta no fim de semana, acompanhada de um pedreiro, para informar da urgência de consertar um vazamento na nossa unidade.
Que Deus me perdoe, mas a morte física, em comparação a outras, não soa tão ruim. Pelo menos nunca se viu ninguém reclamando. Dura é a humilhação dos que têm a “sorte” de envelhecer. Se até então a pessoa não aprendeu o que é um ser humano, a partir daí, com fartura de provas, aprenderá, pra não esquecer nem no Alzheimer.
De ordem física e moral, as humilhações começam por volta dos 50 anos, lentamente, para que tenhamos tempo de nos acostumar com elas — o que ocorre, em parte, pelo truque da comparação.
Nosso instinto de autopreservação nos faz pensar que “estamos mais inteiros” do que outros da mesma faixa etária. Ainda que seja um engano da percepção, se nos ajuda, que seja. A verdade é que essa artimanha dos sentidos é apenas a nossa primeira muleta.
Às vezes deparo com antigos conhecidos nas redes e me espanto. Um deles, no passado um sujeito apresentável, amistoso e ponderado, agora se apresenta com um boné de açougue na cabeça, camiseta do Botafogo, óculos tortos e semblante transtornado. Na sua linha do tempo, um sem fim de postagens rancorosas contra o PT. Disso, ao menos, estou livre, embora solidário na bronca com o PT e agradecido pela indicação do açougue. Eu me sinto um pouco melhor, mas não muito. À minha maneira, também sou rabugento, do tipo que discute com a televisão.
*
Há alguns anos viajei até Cavalcante, uma pequena cidade de Goiás cercada de cachoeiras. Meu filho morava lá. Em visita a uma cachoeira, admirávamos a queda d’água em frente. Alguns banhistas atravessavam a nado o ponto da queda até alcançar o paredão rochoso atrás dela e lá ficar conversando.
“Vamos nadar até a pedra?”, propus.
Começamos a dar braçadas na água fria, lado a lado. A distância até a rocha não era grande, mas, nadando, ela me pareceu maior — e senti medo. Medo de me faltar fôlego e precisar de socorro.
“Fico por aqui”, gritei. “Continua tu”.
De onde parei, movendo os braços para flutuar, eu o assisti prosseguir nas braçadas, transpor o ponto da queda, alcançar a rocha e, lá de trás dos jorros, acenar pra mim.
“Te espero na margem”, gritei. E retornei, nadando devagar.
Eu estava com 56 anos e percebi o sinal.
O maior ativo dos velhinhos é não passar vergonha.
*Rubens Amador é jornalista e editor do www.amigosdepelotas.com.br