Ledo engano
Henrique Pires*
São bastante comuns, em regiões pantanosas, as imagens que vemos de longe com as paisagens verdejantes e bucólicas, lindas ao serem sopradas pelos ventos que movimentam pássaros e borboletas em voos coloridos. Se chegarmos perto, não nos surpreendamos ao nos depararmos com a luta feroz que podemos encontrar: cobras, lagartos, roedores, onívoros em geral e aves de rapina lutando pela própria vida e, obviamente, pela morte alheia.
Olhando de longe, até é bonito.
Neste mês estamos comemorando quarenta anos de retorno da democracia no Brasil. Na nossa história, é o mais longo período de democracia que experimentamos, considerando o país desde nossa independência, mesmo se usarmos como marcador apenas o surgimento da República.
Sempre encontraremos pântanos políticos, areias movediças institucionais. Acharemos cobras e também borboletas.
Deodoro da Fonseca, por exemplo, faleceu em 1892. Nosso primeiro Presidente. Nosso único generalíssimo, detentor de inacreditáveis seis estrelas.
Floriano Peixoto, naquela época, recentemente tinha sido eleito seu vice. Também era General graduado e, como Deodoro, herói da Guerra do Paraguai. Alguém se lembra de ter visto alguma foto do enterro do Deodoro? Aquela que deveria ter sido a maior cerimônia fúnebre da história do Brasil, não aconteceu.
Vejam as datas:
Em novembro de 1889, Dom Pedro II foi derrubado.
Começa o governo provisório. Começam os trabalhos da Constituinte e chegamos a 1891. Deodoro é eleito com base na nova Carta. Mas, a brigalhada no pântano (incluindo uma lambança tratando da construção de um novo porto ali em Torres, onde querem erguer outro hoje) o deixa indignado e ele renuncia com seis meses de governo.
Pela nova Constituição, aliás, nova em folha, teria que cair todo o governo e novas eleições deveriam ser chamadas. Esqueceram de combinar com Floriano, que ficou bem sentado na cadeira, assumiu a Presidência como se não fosse expressa a ordem constitucional (que ele também escreveu, pois foi constituinte) a qual solenemente jurou!
“Jurou, mas não cumpriu. Fingiu e me enganou. Pra mim, você mentiu. Pra Deus você pecou” poderia ter cantado Deodoro se a música que fez sucesso na voz de Miltinho já tivesse sido escrita e o intérprete já tivesse nascido.
Há várias narrativas para o agravamento da doença que matou o generalíssimo – aos pés da Santa Cruz – naquele 1892. Sou da opinião que a reiterada insuficiência respiratória que consta nas publicações oficiais esconda mais uma vítima da nefasta tuberculose. Mas isso é apenas minha desconfiança, coisa de leigo estudando sintomas.
Foi enterrado sem honras militares, por ordem testamentária dele, num ato rigorosamente simples, organizado para que não houvesse qualquer inimigo por perto. Mas, os programas de Inteligência Artificial falam em honras. E falam na tosse.
Voltarei nisso qualquer dia.
Em 1893 tivemos uma guerra civil que durou dois anos e nossa República foi em frente, entre solavancos, várias revoluções, duas guerras mundiais, golpes e tentativas várias. Em 1985 iniciamos em março nosso atual período democrático que experimentamos, do qual brotou a Constituição de 1988, que está em vigor e consegue o feito de ser invocada até por quem não gosta dela, sempre que precisa fazer valer seus interesses.
Coisas da democracia, felizmente.
Sobre a foto do enterro solene do Deodoro da Fonseca, primeiro Presidente eleito da República, se alguém achar, quero ver. Não vale a cerimônia da inauguração do monumento a ele na década de 1930. E nem do século XIX, criada por inteligência artificial.
*Henrique Pires é jornalista e historiador.