CRÔNICA – PRECISAMOS FALAR SOBRE JACOB

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Precisamos falar sobre Jacob

Luiz Ricardo Lanzetta*

Há três anos, com 18 anos, Luiz, meu neto, voltou para a minha casa falando de Anpoc, capitalismo anárquico, individualismo, desnecessidade do estado, com os olhos numa aparência de  “zumbi de Kim Catupiry”.

O anarquismo sempre me interessou, no plano acadêmico, nos bares e aparelhos, desde toda vida, principalmente até agora.

Mas não juntei logo os nomes a pessoa em à minha frente.

A porralouquice primordial me empurrou em direção às velhas prateleiras e de lá trouxe os clássicos: Proudhon, Bakunin, Victor Serge,Tolstoi, Malatesta, Oscar Wilde, Rossi e a Colônia Cecília do Paraná, entre outros.

Mas o meu xodó sempre foi Piotr Kropotkin, o multi cientista russo, autor do inigualável “O Apoio Mútuo”.

O teórico que, na virada entre o século 19 e 20, foi ofuscado, na política pelo marxismo e nas ciências humanas e biológicas por Darwin, é meu conhecido há 44 anos.

Com o livro na mão, voltando para retomar a conversa, já tinha juntado as pontas da história familiar. Infeliz e fulminado com a dureza das peças que a vida prega em nós, os inocentes inúteis.

Num instante, a obra em papel de Kropotkin quase que voa como arma letal. Antes fosse o livro do Bakunin, muito chegado a uma bomba caseira.

Kropotkin era da paz. Um anarquista do bem.

Cientista, estudou todos os seres, as plantas e suas sociedades. Formigas, abelhas, pássaros, o homem em suas mais variadas fases evolutivas.

A conclusão é uma teoria a favor da coletividade e da sociedade igualitárias.

Da solidariedade. O apoio mútuo como grande fator para o desenvolvimento dos seres vivos.

Não é o indivíduo, o mais apto, o vencedor da corrida da sobrevivência, que serviu de estímulo errôneo para a crença em super-homens, reforçando o egoísmo em todas as áreas.

É o coletivo solidário o fator determinante do avanço de todos os seres vivos.

Um contraste com o “darwinismo social”, que foi o deleite das teorias e práticas fascistas que se seguiram.

Os mais aptos também podem ser grupos horizontais e solidários, segundo o ângulo luminoso de Kropotkin.

O fosso entre gerações abriu-se profundamente, outra vez.

O anarcocapitalismo nem utopia é. É um besteirol.

A terra plana da teoria política, no momento em que a ciência está escancarando o universo para a frente e revolvendo a terra do “para trás”, transformando em pó muitas verdades históricas e religiosas.

Um neto ingressando na  direita idiotizada, de forma voluntária, é o fim de todas as esperanças.

Estão escancaradas todas as dantescas portas.

O Estado absolutista

O capitalismo como conhecemos foi desenvolvido na Europa como sistema integrante e essencial das monarquias absolutistas e de  suas alianças com a igreja e a burguesia estreante.

Um estado muito estruturado, dono das iniciativas e do capital. Forte e indutor absoluto de seus interesses. Desde cada caravela, uma unidade de negócios, até a distribuição das terras férteis e ricas, numa reforma agrária sempre para cima.

No Renascimento, por exemplo, recuperou-se o Direito Romano, que tinha o  conhecimento de consagrar o conceito de propriedade privada, desde a Antiguidade: de Deus para o Rei, do Rei para os escolhidos do Rei. O direito divino era registrado em cartórios a partir daí.

De 1500 até o início do século 20, depois de passar por Portugal, com muito atraso o capitalismo instalava-se na Rússia.

Em seguida, os russos nos deram o laboratório do “capitalismo” de estado e logo a China inventou o seu capitalismo confuciano para a sua mais nova e majestosa dinastia.

Ainda no século passado, começamos a ter Repúblicas e monarquias islâmicas capitalistas, em cima de um oceano de petróleo.

Este movimento insano que está só começando, é protagonizado também por Israel, outro guerreiro do capitalismo.

O novo formato artificial das tribos itinerantes dos escolhidos por Deus tem apenas uns 80 anos.

E os Estados Unidos, o modelo cristão de capitalismo sob bombas na cabeça dos outros, até que não fique ninguém pé, tem apenas 300.

Onde foi, nesse tempo todo, registrado um movimento da “mão invisível do mercado”, inocente e despretensioso, a favor do sistema capitalista avassalador?

Não há movimento em prol do capitalismo, nos últimos 500 anos, por cima, por baixo, pelos lados, pelo alto que não tenha vindo de algum Estado, de diferentes composições, força, poder, coerção e corrupção.

Sem Estado não há capitalismo. Não há socialismo.

Nem, Nem

Mas o meu neto, também militante persistente do movimento Nem, Nem (não estuda, não trabalha, não sai de cima…) é resistente a argumentos históricos, científicos, lógicos e até engraçados.

Enfim, tem a sua opinião, a sua liberdade individual e o egoísmo como valor supremo universal.

No momento, passeia despreocupado com seu skate pelas ruas de cidades italianas. Quando cai acidentalmente e quebra um osso, o Estado social do governo neofascista o coloca no lugar. É de graça e ele não reclama.

Kropotkin no Espaço

Nessa mesma época, a do conflito geracional, caiu-me  em mãos o livro do biólogo italiano Stefano Mancuso, A Revolução das Plantas (Cia das Letras).

Ele me deixou em choque com várias citações respeitosas a Kropotkin. Não só isto. Como referência científica acreditada.

Se Kropotkin foi geógrafo, economista, cientista político, sociólogo, zoólogo, historiador e filósofo até 1924, quando morreu, Mancuso tem uma igual  formação: botânico, biólogo, neurobiólogo, neurocientista e escritor. Mancuso é hoje diretor do Laboratório Internacional de Neurobiologia Vegetal, em Florença. Sua especialidade é uma florzinha, “comigo ninguém pode”.

Ao mesmo tempo, ele trabalha para a NASA. Projeta robôs para viagens de exploração espacial, espelhados nas características das plantas, muito mais aptas à sobrevivência em ambientes hostis que o biotipo do homem, frágil e egocêntrico, como mostra a sua breve passagem pelo planeta.

O Apoio Mútuo, surpresa!, escrito há mais de 100 anos, é a tese para levar o anarquismo científico para o espaço.

A solidariedade e não o individualismo capitalista. Não o homem que quando perde um pedacinho do corpo pode morrer inteiro. Mas as plantas que, ao serem cortadas, se multiplicam.

Quem foi feito à imagem e semelhança de Deus?

Os cientistas anarquistas preocupam-se e trabalham contra o fim da passagem da humanidade no Planeta. Já há mais de um século.

Comecei a ler Kropotkin, em espanhol no único exemplar que existia na UnB, em 1980.

Era o complemento a um trabalho que estava fazendo com o colega Carlos Setti, no Curso de Pós-Graduação em Comunicação.

Nós examinávamos a produção dos jornais alternativos e comunitários sob a influência de teorias sociais e humanistas do educador famoso.

Eu lembro que um deles era o Jornal dos Bairros de BH, ligado ao movimento eclesial de base, da Igreja Católica,  e um outro da Baixada Fluminense, tocado por jornalistas da esquerda revolucionária.

Por aqueles dias, voltando do exílio e matando a saudades do campus da Universidade, de onde fora expulso pelas militares em 1964, Freire tímida e modestamente participou de um seminário nosso. Num cantinho do imenso corredor chamado “Minhocão”.

Assim como não quer nada, quase pedindo desculpas por sua presença e nós nos beliscando.

Freire pode ter ouvido de um ousado acadêmico que ele não era “marxista”, como lhe atribuíam admiradores e detratores. Na verdade, ele seria um anarquista cristão, influenciado por Kropotkin.

Esta suposição, na verdade o que pensávamos num silêncio referente, não deve ter circulado audivelmente pela pequena sala, perdendo-se nos confins das memórias não auditáveis.

Se os skates do meu netinho o levarem às ruas de Buenos Aires para um provável encontro mundial de anarcocapitalistas, vai expô-lo a duas realidades cruéis: não há capital selvagem, indisciplinado e desinteressado. E nem anarquistas com livros interessantes por lá.

Só receitas de coquetéis molotov.

No bar Beirute, no DF, em 1980, vendia-se a revista anarquista Veneno.

Que saudades.

Em 1893, surgiu em Buenos Aires o jornal anarquista “La Protesta”. Ainda circula. Impresso.

Preciso que me tragas um.