UMA LUZ PRÓPRIA NA SANTA SÉ
Por Clayton Rocha – Em abril de 2005
Os telões afixados junto à entrada da Notre Dame ainda mostravam a cerimônia de entronização do Papa Bento XVI (Benoit para os franceses), mesmo depois de decorridas vinte e quatro horas de sua ascensão ao trono de Pedro. E havia público dentro e fora da Catedral. Esta foi minha primeira imagem de Paris, depois de dez dias de Roma, vivendo, e intensamente, os períodos de Sede Vacante e de eleição do Pontífice. A partir de 19 de abril, dia no qual o Papa apresentou-se ao mundo, os jornais italianos e franceses estamparam na capa as mesmas interrogações dos jornais do Brasil. Havia surpresa. Um Papa alemão? Os títulos falavam em retrocesso da Igreja, homem de ferro, conservador por excelência, e coisas no gênero. Mas não é bem assim.
O primeiro Papa do terceiro milênio, aquele que entrou papabili e saiu Papa, derrubando velha escrita, e que será um Pontífice de transição, de curto período, pela idade e pela doença – um derrame cerebral em 1991 e vários problemas cardíacos -, carrega consigo uma marca reservada a poucos: o brilho intelectual, a imagem unânime na Europa de que é um gigante do pensamento. Um homem capaz de debater bioética no Parlamento italiano, e de ser impiedosamente provocado, para sair, depois, consagrado, sob aplausos prolongados. Este teólogo por profissão, um dos grandes nomes da história da Igreja em todos os tempos, subiu com o poder do intelecto todos os degraus que o conduziram ao comando da Congregação para a Doutrina da Fé durante 23 anos, à condição de Decano do Colégio dos Cardeais, a de homem de confiança de João Paulo II e, finalmente, a de Chefe Supremo da Igreja Católica.
Se antes se dizia que ele precisaria de tempo para ocupar o espaço de seu antecessor, chamado de O Grande, agora a conversa começa a mudar. Ele já está instalado no comando da Santa Sé e tem luz própria. Bento XVI, o conservador, fala bem, e em vários idiomas, não arreda pé de suas convicções, mas começa a ser visto com a consideração digna de ser tributada aos homens de gênio.
Tenho ainda viva a sua mensagem, pronunciada por ocasião da missa Pro Eligendo Pontífice, celebrada pouco antes do início do Conclave, na segunda-feira, 18 de abril, em homilia que foi determinante para a consagração final do Cardeal da Alemanha. Nela, ele conclama a Igreja a permanecer imune ao relativismo, às modas filosóficas e às ideologias modernas. – “Jesus Cristo é a misericórdia divina personificada: encontrar Cristo significa encontrar a misericórdia de Deus.” Ele pede que sejamos adultos na fé. Não deveríamos permanecer crianças na fé, em estado de menoridade. Este comportamento nos faz pensar em São Paulo, que responde: “Isto significa sermos arrastados pelas ondas e levados para lá e para cá por qualquer vento doutrinário.”
O pequeno barco do pensamento de muitos cristãos foi, não raro, agitado por essas ondas, jogado de um extremo ao outro: do marxismo ao liberalismo, do coletivismo ao individualismo radical, do ateísmo a um vago misticismo religioso, do agnosticismo ao sincretismo.
Para Joseph Aloysius Ratzinger, o filho de Deus é a medida do verdadeiro humanismo. E “adulta” não é uma fé que segue as ondas da moda e a última novidade: adulta e madura é uma fé profundamente enraizada na amizade com Cristo. É esta amizade que nos abre a tudo aquilo que é bom e nos dá o critério para discernir entre verdadeiro e falso, entre engano e verdade. Devemos amadurecer esta fé adulta, a esta fé devemos conduzir o rebanho de Cristo. E é esta fé – só a fé – que cria unidade e se realiza na caridade.
No dia seguinte à esta homilia, numa terça-feira iluminada desde cedo por um Sol primaveril, a compreensão de que ali estava o homem certo para a Igreja de Pedro, seria silenciosamente expressada no final da tarde através de uma fumaça branca que daria a boa novo ao mundo católico: Habemus Papam! E ele vem da Alemanha! É o oitavo Pontífice alemão, o primeiro Papa alemão dos últimos 950 anos, o primeiro Papa do terceiro milênio! E ele se chamará Bento XVI, em dupla homenagem, uma a São Bento, o Patrono da Europa; e a outra a Bento XV, o Papa da paz.
Em suas falas seguintes, na Basílica, na Praça de São Pedro, na Sala Paulo VI, por ocasião de seu inédito encontro com a Imprensa, quando ele expressou seus agradecimentos a dois mil jornalistas convidados pela Santa Sé, pudemos ouvir discursos fortemente fundamentados na lógica cristã. E Bento XVI não deixou dúvidas sobre seu pensamento quanto às necessidades do mundo para sair do deserto da pobreza, do abandono, do amor destruído, da ausência de Deus e do vazio da alma. Necessita de Cristo e da Igreja, necessita de fé, “pois não somos fruto da evolução, mas sim fruto do pensamento de Deus”.
A resposta dos fiéis, e esta tendência a uma rápida aceitação do novo Pontífice, devem ter convencido Bento XVI, – hoje bem mais à vontade com os meios de Comunicação -, quanto ao que se espera dele: muita fé, pouco show. Poucas viagens, muitas mensagens. E a certeza de que será bem diferente de Karol. O oitavo Papa da Alemanha mostrará que a liturgia não é um espetáculo, mas que necessita sobretudo de repetições solenes, devendo reintroduzir o rito em latim e o canto gregoriano. Mas o Santo Padre será, acima de tudo, muito firme na defesa da fé católica. E a fé, por sinal, é o que jamais faltou ao menino prodígio da Baviera, nascido à beira do rio, em pequeno povoado de dois mil e setecentos habitantes, ao sul da Alemanha. Ali ele ouviu Mozart, leu Santo Agostinho, leu Paul Claudel e se transformou, em curto espaço de tempo, numa sólida referência da Igreja da Alemanha.
Tocado pelo Senhor, ele haveria de vencer a timidez através da leitura, do domínio da palavra e da força do pensamento. O filho de José, um comissário de polícia; e de Maria, uma dona de casa, se apoiaria na teologia para alcançar, na hierarquia da Igreja, vencendo etapas, a glória de todos os seus títulos.
Possuidor de uma fé inabalável, Bento XVI compreende – talvez como ninguém – os sentimentos de Claudel, quando o seu poeta preferido recebe, aos pés de Nossa Senhora, na Notre Dame de Paris, a graça de acreditar. E quando este mesmo poeta, tocado pelo sinal Divino, fala de sua extraordinária conversão:- “Eu estava de pé na multidão junto da Segunda coluna à entrada do Coro, à direita do lado da sacristia. Foi então que deu o acontecimento que domina toda a minha vida. Num instante, o meu coração foi tocado e eu acreditei. Acreditei com uma tal força de adesão, com um total envolvimento de todo o meu ser, com uma convicção tão poderosa, com uma tal certeza sem deixar espaço a qualquer dúvida que depois todos os livros, todos os raciocínios, todos os acasos de uma vida agitada jamais puderam fazer vacilar a minha fé. Eu tive de repente o sentimento abalador da inocência, da eterna infância de Deus, uma revelação inefável.”
- Não teria sido este um profundo sinal de fé e inspiração do Cardeal Ratzinger, profundo conhecedor da obra de Paul Claudel, diante do grande mistério?
- Esta é a pergunta que um Pontificado carregado de expectativas haverá de responder. E sendo Bento XVI um gigante do pensamento, capaz de oferecer, já no alvorecer de seu Pontificado, uma luz própria à Santa Sé, convincente certamente haverá de ser a sua resposta.