ARTIGO – PASSATEMPO DA MINHA TERCEIRA IDADE – JOÃO CARLOS GASTAL JÚNIOR

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PASSATEMPO DA MINHA TERCEIRA IDADE

João Carlos Gastal Júnior*
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Tenho um passatempo que, tanto quanto sei, não compartilho com qualquer amigo ou conhecido, de qualquer idade. Trata-se do seguinte: estendo-me em debates com liberais, conservadores, pessoas, inclusive, com quem estou plenamente consciente de que jamais chegarei ao mais raso nível de consenso.
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Já o nível de radicalidade do meu passatempo, este sim, tem-se aprofundado. Há dois ou três anos, cruzei, nas publicações feicebuquianas de um amigo da juventude, com alguém que, ao que posso perceber, é extremamente conservador, talvez de extrema-direita (é difícil saber bem no mundo real, mais ainda no ambiente virtual).
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Ao longo desses poucos anos, já dediquei algumas horas a uma meia dúzia de debates com essa pessoa. No mais recente, tivemos um longo, repetitivo e tedioso debate acerca de haver, ou não, a bancada de Senadores do PT apoiado a invasão da Ucrânia.
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Talvez já tão esgotado quanto eu de falar sobre esse tema, ele me provocou para um debate evidentemente muito mais amplo, rico, estimulante; e, depois vim a saber, debate que a ele toca pessoalmente: o recente levante chileno. (Numa das intervenções mais recentes, ele revelou viver no Chile, embora seja bastante bem informado sobre a política brasileira e escreva em bom português — embora, claro, não seja impecável.)
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Nesse tema, ele me afirmou, entre outras coisas: que a violência lá ocorrida foi dos revoltosos, não dos carabineiros, sendo ele, pessoalmente e junto com sua família, inclusive um filho de oito anos, testemunhas e vítimas do que afirma; que “a repressão (dos carabineiros) não foi brutal”; que foi durante agressões mútuas entre os revoltosos que muitos deles perderam olhos; que narcotraficantes foram presos, não apenas por crime de tráfico, mas por haverem, comprovadamente, financiado ações do levante, repetindo-se, nesse caso, a “tradicional aliança da esquerda” (ou seja, com o narcotráfico).
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Enviou-me, também, dois breves vídeos de incêndios em ruas e prédios, imagens nas quais aparecem manifestantes — ao que se pode supor. Numa cena, algumas pessoas arrastam o que parece ser um armário semi-incendiado para fora de uma loja, aparentemente perpetrando um saque.
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Na forma de um slide, enviou uma citação de um certo (ou incerto) Ronald Rivera Calderón, líder de uma certa (ou incerta) Vanguardia Organizada del Pueblo: “La subversión debe hacerse con delincuentes (esta última palavra vem sublinhada no slide), por que son los únicos no comprometidos con el sistema; los obreros luchan solamente por aumentos de sueldo, y los estudiantes son pequeños burgueses jugando a la política; en el hampa está la cuna de la revolución. “Numa faixa na parte baixa do slide se lê: “¡Por esta razón el marxismo es una ideologia criminal!” (Fui ao Google para saber que “hampa” pode ser traduzido como “submundo”. Creio que o único outro vocábulo na frase atribuída a Calderón que pode trazer alguma dificuldade para falantes de português é “cuna”, “berço”.) O slide contém, ainda, uma foto do tal Calderón e um distintivo de um certo (ou incerto) Centro de Defensa de La Nacionalidad — Chile. A imagem nesse distintivo guarda vaga semelhança com o símbolo da OTAN.
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Desde logo, lamentei profundamente qualquer violência que qualquer inocente, especialmente criança, tenha sofrido, em qualquer lugar, em qualquer circunstância, repudiando veementemente esses atos. E fiz brevíssimas considerações acerca daquelas últimas afirmações do meu debatedor: sobre lesões mutuamente causadas entre os revoltosos e sobre o financiamento do levante por narcotraficantes.
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Horas depois dessa última troca de argumentos, percebi que meu debatedor havia, mais uma vez, me proporcionado uma interessante reflexão e oportunidade para organização de ideias. E essa é a satisfação embutida no meu passatempo da terceira idade: encontrar motivação para reflexões e oportunidades para organização de ideias.
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O texto abaixo é o produto desta motivação e desta oportunidade.
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A brutalidade sem medida dos carabineiros chilenos é mundialmente conhecida há muito tempo, desde muito antes da ditadura Pinochet. Manifestou-se continuamente ao longo da história dessa força policial-militar, exacerbando-se, naturalmente, nos períodos ditatoriais e durante sublevações populares.
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Ressalto, desde logo, não se tratar de uma particularidade do Chile. A brutalidade é atributo destacado de MUITAS forças policiais pelo planeta, algumas dessas em patamares ainda mais hediondos do que outras. O traço marcante da ação dessas forças policiais é a total desconsideração pela dignidade da pessoa humana, a crueldade mais abjeta, a violência que seria equivocado qualificar de animalesca, pois animal algum é movido por perversidade. Desconsideração pela vida humana. Humilhação, maus-tratos, tortura, execuções.
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Essas forças policiais estão sediadas em países como o Brasil, os Estados Unidos, em todas as ditaduras — da Arábia Saudita à Coreia do Norte, da Nicarágua a Belarus, do Egito à Venezuela.
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(Antes que você questione, posso lhe responder: não, durante os governos do PT, não houve elevação — ou, se houve, foi insignificante — no nível de respeito à cidadania praticado pelas polícias brasileiras. Eventuais melhoras e pioras foram localizadas, resultado da ação de governos estaduais. O Governo Federal não teve, ao que eu saiba, iniciativas eficazes para promover essa elevação. Se os governos de esquerda do Chile conseguiram, em alguma medida, “amansar” os carabineiros durante seus mandatos, realmente não sei.)
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Retomando o raciocínio.
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Polícias de regimes já extintos ganharam infâmia por sua brutalidade. Eram extremamente temidas as polícias salazarista, franquista, a da ditadura militar grega (1967-1973), a de Mussolini, a Gestapo, de Hitler, a Savak, de Reza Phalavi, a Stasi, da Alemanha Oriental, a Okhrana, dos Tsares, o KGB, soviético.
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Países que conquistaram a democracia elevaram — uns mais, outros menos — o nível do respeito à cidadania pelas suas forças policiais. É o caso de Portugal, Espanha, Grécia, Itália, Alemanha.
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Agora, se você segue determinado a provar ao mundo que os carabineiros chilenos realizam um policiamento cidadão comparável ao da polícia do Reino Unido, dos Países Baixos ou da Noruega, tenho certeza que você não está aguardando a minha licença para dar seguimento à sua epopeia. Boa sorte.
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Quanto a esse certo (ou incerto) Calderón, posso dizer-lhe que nem de longe, de muito longe é novidade para mim que abundam, entre os “quadros” da “esquerda”, idiotas e lunáticos de todo jaez. Pior ainda: não foi uma nem duas vezes na história que idiotas e lunáticos chegaram ao poder sob a bandeira da “esquerda”, revelando-se, não mais apenas idiotas e lunáticos, mas psicopatas, perversos e genocidas. Os exemplos são bastante conhecidos. Uns ainda mais hediondos do que outros.
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A frase do dito cujo é um “primor” de conhecimento sociológico, político e histórico. Admira-me que ele não tenha conquistado o poder em seu país e, a partir daí, construído um império continental, quem sabe nossa almejada URSAL. Fiquei curioso para conhecer a trajetória do líder da Vanguardia Organizada del Pueblo e da organização que chefiou [ou chefia? (viverá ainda o bravo Calderón?)].
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*João Carlos
05/03/2022