O turquinho gaitista que ganhou 200 mil réis no Guarany
Lourenço Cazarré*
Em 1926, um representante da Hohner (fábrica alemã de instrumentos musicais fundada em 1857), conhecido como Professor Charles, promoveu em Pelotas um concurso que daria um prêmio de 200 mil réis ao garoto que melhor tocasse gaita de boca.
Inscreverem-se 300 piás, estudantes dos colégios Pelotense e do Gonzaga. Feita uma peneira, passaram para a segunda fase 15 jovens musicistas que se defrontariam, na grande final, no Theatro Guarany.
No dia (ou seria noite?) da decisão aquela grande e bela casa de espetáculos encontrava-se abarrotada. Um dos primeiros a se apresentar foi um guri de Dom Pedrito, chamado Simplício Garcia, que deslumbrou o público ao executar o relativamente recente El panuelito blanco, tango argentino de 1920. Tornou-se então o preferido da plateia, que passou a hostilizar os que o sucederam.
– Sai daí, moleque! – gritavam. – Simplício já ganhou!
E o público foi nessa toada até o último executante, um mandinho de nove anos, natural de Jaguarão, filho de imigrantes sírios.
Sem dar bola para a gritaria, o turquinho fronteiriço pegou sua harmônica e lascou uma seleção de trechos de óperas que começou como a Tosca e foi deslizando por Fausto, Rigoletto, Madame Butterfly, La traviata e Cavalleria rusticana até desembocar na protofonia de O guarani. Nem é preciso dizer que o respeitável público da Atenas rio-grandense foi ao delírio. Aclamado vencedor, o pequeno Eduardo – tocando sua gaitinha – foi carregado nos ombros da multidão pelas ruas da cidade.
Desovando o estoque de gaitinhas
Em 1933, atravessando uma fase de vacas magras nos seus negócios, o pai de Eduardo meteu-lhe nas mãos 300 mil réis e o despachou para São Paulo a fim de ganhar a vida por lá.
Certo dia, depois de ter tentado inutilmente arranjar um emprego em lojas de “brimos” ou “batrícios”, já ameaçado de ser expulso da pensão em que se hospedava, o rapaz de 16 anos chegou ao cruzamento da rua Líbero Badaró com a avenida São João. Ali um sujeito tocava uma gaita de beiços (como dizem os portugueses) e arrecadava moedas num chapéu virado de boca para cima.
Lembrando-se do triunfo vivido no Guarany, em Pelotas, que o consagrara como menino-prodígio, Eduardo caminhou cem metros até a Casa Manon – que negociava instrumentos musicais – e propôs ao gerente, mediante pagamento de uma comissão de 30 por cento, acabar com o encalhe de gaitinhas de boca daquele afamado estabelecimento.
Acordo fechado, o rapazola colocou-se na porta da loja e começou a soprar. Em menos de duas horas, conseguiu vender as 17 harmónicas (como dizem e escrevem os portugueses) que mofavam no depósito.
Músico excêntrico
Em 1934, Eduardo seguiu para o Rio de Janeiro onde viveria por quase cinquenta anos, até sua morte em 1982. Exerceu por lá incontáveis ofícios: camelô, pianista de bordel, secretário de bookmaker, datilógrafo, cantor de tangos e vendedor de livros didáticos. Mas sem jamais abandonar sua gaitinha, embora lamentando, no começo, que fosse um instrumento de poucos recursos.
Ao solicitar sua primeira carteira de trabalho, foi fichado como “músico excêntrico”.
Moto perpétuo
Em 1939, Eduardo conheceu – por intermédio de um músico recém-chegado de Nova Iorque – uma gaita que possuía uma chave que, ao ser acionada, subia meio tom da afinação original. Era, enfim, aquilo com que ele vinha sonhando há muito tempo.
– Ela existe! – exclamou encantado. – Estou salvo.
Nos anos seguintes, Eduardo apresentou-se nos cassino da Urca e de Icaraí e trabalhou na rádio Mayrink Veiga.
Em 1945, ele começaria o avanço em direção a um novo e mais alto patamar artístico. Ao presenciar, no estúdio da Mayrink Veiga, o violinista João Corrêa de Mesquita executando trechos de uma peça dificílima, quis saber:
– O que é isso, Mesquita, vais tocar Moto perpétuo?
– Não – explicou o amigo. – Eu só ensaio pra melhorar a minha técnica.
– Será que eu consigo tocar alguns compassos na gaita?
– Se você conseguisse executar todo o Moto Perpétuo, seria uma proeza e tanto…
Eduardo conseguiu. Após onze anos de estudo, em junho de 1956, gravou com sua harmônica cromática a integra dessa obra de Paganini – originalmente composta para violino – que conta com a bagatela de 2400 notas que devem ser executadas, sem pausa alguma, em menos de 4 minutos.
Um dos maiores violinistas da história, Nicollo Paganini escreveu essa peça musical para testar a habilidade dos músicos que se julgam extremamente bons no domínio de seus instrumentos.
A performance do jaguarense foi concluída em apenas 3 minutos e 21 segundos e ele é considerado o primeiro artista, no mundo, a gravar o Moto perpétuo em instrumento de sopro.
Edu da gaita
O nome completo do guri que com nove anos meteu 200 pilas no bolso era Eduardo Nadruz, mas que seria conhecido nacionalmente como Edu da Gaita, alcunha artística que lhe foi posta pelo radialista César Ladeira, inventor dos cognomes de Carmen Miranda (Pequena Notável), Sílvio Caldas (Caboclinho Querido) e Carlos Galhardo (Cantor que dispensa adjetivos).
Eduardo Nadruz gravou 21 discos, sendo que quatro deles eram de composições próprias: Arabescos, Batuque (com Humberto Teixeira), Uma gaita em Sevilha (com Laurindo de Almeida) e Uma gaita sobe o morro.
Desinformação
Comecei a escrever essa crônica quando ouvi falar da passagem de Edu da Gaita por Pelotas. O meu (des) informante – um cidadão de família germano-calabresa que veraneava numa casinha de madeira nas proximidades do Aveiro – me disse que achava que Edu da Gaita fosse pelotense porque havia sido colega de escola do seu pai, um insigne pescador do trapiche do Laranjal.
Fui atrás dessa história. Descobri que Edu não era pelotense, mas que sua passagem pela Princesa do Sul valia um causo. Este, que segue abaixo.
Um “barente” artista plástico
Tempos depois de ter escrito a crônica sobre a performance vitoriosa do menino Edu no Teatro Guarany, vim a saber que um de meus amigos, o artista plástico e jornalista Enio Squeff, gaúcho que reside há mais de 50 anos em São Paulo, conheceu bem o gaitista. Mas por quê? Porque eram primos. A mãe de Edu, dona Fayd Abdalla Nadruz, era irmã do médico João Abdalla, pai de Enio.
Mesmo com uma diferença de idade de 27 anos, os dois eram muito próximos. Já residindo no Rio, nas suas idas frequentes a Porto Alegre, para exibições de sua arte, o gaitista costumava se dirigir à casa dos Squeffs, na subida da Protásio Alves, em Petrópolis. Durante os jantares, nos quais quase não comia, Edu contava causos e dava canjas com sua gaitinha.
O jovem Enio surpreendeu-se certo dia quando foi a um hotel da capital gaúcha em que Edu estava hospedado. Lá sobre a cama, havia uma pilha enorme de cédulas. Era o generoso cachê recebido pelo músico, que pediu a ele que contasse aqueles cobres para ver se o total conferia com o que dizia o contrato.
– Edu era baixinho, magrinho e fumava como uma locomotiva – descreve Enio.
O tabagismo de Edu pode parecer hoje incompreensível – mais que isso: uma incongruência – pelo fato de ele praticar uma arte musical assentada no sopro. Mas a verdade é que o consumo exagerado de fumaça era uma constante entre os homens daquele tempo, em especial os artistas.
Contador de causos
A outra faceta de Edu destacada por Enio Squeff era o fato de ele ser um divertidíssimo contador de causos. Um causeur, como se dizia então. Um depois do outro, Edu enfileirava casos engraçadíssimos, entre os quais se destacavam os de suas serenatas em Jaguarão, executadas à bordo de uma carroça. É que o músico, também exímio tecladista, costumava executar seus galanteios sonoros com o piano instalado no espaço cotidianamente destinado ao transporte de mercadorias.
Esse outro lado artístico de Edu, a narração de historietas engraçadas, se desenvolveu em espetáculos – performances, seria o termo de hoje – em um bar de muita fama no Rio de Janeiro.
Semanalmente, nesse tal boteco se reuniam renomados contadores de causos, como os jornalistas João Saldanha e Millôr Fernandes. Cercados pelo frequentadores da casa, que não podiam abrir o bico, a não ser para gargalhar, Edu, Saldanha e Millôr desfiavam histórias do arco da velha.
De acordo com seu primo, Edu era cantor afinadíssimo, embora tivesse uma voz muito rouca.
O maior tocador de harmônica do Brasil ficou contentíssimo ao saber que Enio – que participou como repórter da equipe que fundou a revista Veja – havia assumido a crítica de música erudita do jornal O Estado de S. Paulo, função em que permaneceu por muitos anos, antes de seguir para a mesma área na Folha de S. Paulo.
YouTube e internet
Para fechar a conta: quem quiser escutar o Moto perpétuo executado por Edu da Gaita, deve ir ao YouTube. Quem quiser saber mais sobre Eduardo Nadruz, deve ler um belo e comovido texto escrito pelo filho dele, Eduardo Nadruz Filho, que pode ser encontrado na internet.
*Jornalista e escritor.