ARTIGO – É MÚSICA O DIA INTEIRO
Lourenço Cazarré*
Publicado originalmente no site: www.paginaum.pt
Era muito cedo, estava frio e o guri cabeceava de sono.
– O teu corpo pede cama – disse o avô. – Aí, tu falas para ele: moleza, não; calorzinho, não!
Quando saíram para o pátio, a frialdade e a escuridão fizeram com que o menino estacasse. No fundo do pátio, além da cerca de arame, ele viu um traço vermelho na base do céu.
– Vamos para o meio do pomar – disse o velho.
Lá, entre as goiabeiras e laranjeiras, a escuridão era mais fechada. O neto sentiu um pouco de medo, teve até vontade de chorar, mas engoliu em seco e concentrou-se na figura do avô: uma mancha mais escura no meio daquele negrume.
– Presta atenção!
Viu que o velho se curvava e espalmava as mãos no chão gelado e que, a seguir, com um movimento ágil, jogava as pernas para trás.
– O nome disso é apoio de solo.
Interessado no que fazia o avô, o menino agachou-se. Percebeu então que o corpo dele, reto como uma tábua, subia e descia, movido apenas pela força dos braços.
– Faço vinte, no mínimo. Mas, quando me irrito com os meus braços, quando eles fraquejam, dou uma ordem: mais dez!
O piá esfregou os braços enregelados. Seus olhos correram pelo negror que o circundava. Teria algum bicho pendurado naqueles galhos molhados? Tremia de frio, seus dentes chacoalhavam.
As juntas dos braços do velho crepitavam.
O vovô vai se desconjuntar, pensou.
– Agora é a tua vez – disse o avô, ofegante, depois de pôr-se em pé.
– O quê?
O velho soprou forte para colocar a respiração em ordem.
– Faz como eu: mão na frente do peito, corpo espichado.
Com movimentos delicados, o avô ajudou o neto a espichar-se por cima do chão úmido.
– Tu não precisas atingir a perfeição no primeiro dia. Tu até podes te retorcer como minhoca em areia quente que, depois, aos poucos, tu pegas a feição.
O garoto fez dois movimentos incertos, sinuosos.
– Faz mais um! – ordenou o avô.
– Não aguento mais.
– É por isso mesmo. Teu corpo tem que aprender. Quem manda é a força de vontade. O corpo só tem que obedecer.
O menino moveu de leve o corpo.
– Por hoje, está bom! Te levanta!
Um galo cantou ao longe.
– Agora, vou te mostrar o inferno – disse o velho e se dirigiu à portinhola que ficava debaixo da escada que descia da cozinha.
Assustado, o guri parou no centro do pátio. O avô voltou-se para ele, risonho:
– Estou só brincando, seu pateta! Temos três peças boas aqui no porão. Vem!
Vagarosamente, o menino dirigiu-se à porta que se abriu com um rangido de filme de terror.
– Aqui, nesta primeira peça, fica a minha oficina.
Cauteloso, o pequeno passou pela porta aberta. Ao sentir o ranço forte de umidade e mofo, tossiu. Uma lâmpada fraca mostrava uma peça pequena, que tinha uma bancada de carpinteiro. Não teve tempo de examiná-la porque o avô já o chamava da peça seguinte.
– Aqui dormem os passarinhos.
O pequeno ficou encantado com o grande número de gaiolas que havia por ali. Em cada uma delas havia um bichinho sonolento.
– Daqui a pouco vou te apresentar a eles. Todos têm nome de gente. Vem.
Passaram à última peça.
– E aqui, vô, o que é aqui?
– É o depósito, onde a gente guarda coisas velhas. Te senta.
O piá ajeitou-se na cadeira que o avô lhe indicara, diante de uma penteadeira. O espelho estava rachado ao meio. No teto baixo, por cima da cabeça dele, pairava outra daquelas lâmpadas amareladas. O chão era de cimento áspero.
Enquanto o velho furungava nas gavetas da penteadeira, os olhos do seu neto percorriam os cantos mais afastados da peça.
É certo que aqui tem rato, pensou. Ratos e outros bichos nojentos. Cobras e escorpiões. Talvez até aqueles morcegos que chupam sangue.
Mergulhado nessa preocupação, não percebeu que o avô estava de pé por trás dele, empunhando alguma coisa. Sentiu então o primeiro beliscão da máquina, na base do crânio.
– Vou arranjar um corte de homem para ti – disse o velho. – Mulher é que gosta de cabelo comprido.
A máquina mordia e remordia.
– Tu sabes o que é vaidade?
– O quê, vô?
– Vaidade? Vaidade é se considerar bonito. Um homem pode ser feio. As mulheres, não. Elas são vaidosas.
Os beliscões da máquina doíam uma barbaridade. Discretamente, o menino limpou umas lágrimas.
– Cabelo é vaidade. Então, a gente raspa. Além do mais, a cabeça fica livre dos piolhos.
O guri fechou os olhos com força para evitar a saída de novas lágrimas.
– Está pronto – disse o velho, passando a mão áspera pelo pescoço do neto. – Agora, só vamos aparar, todo sábado.
Saindo dali, entraram na peça em que se encontravam os passarinhos.
– Eles atravessam o dia todo cantando. Se prestares atenção, vais ver que sempre tem um deles piando. Um canta melhor do que o outro.
O pequeno se aproximou de uma gaiola. Dentro dela, viu um passarinho amarelo todo encolhido. Devia estar morrendo de frio. Tentou enfiar o dedo entre as grades para acariciá-lo, mas o bichinho recuou.
– O canto deles vai emendando um no outro. Um para e o outro começa. É música o dia inteiro.
A atenção do guri foi atraída pela gaiola onde havia um bichinho diferente, mais bonito.
– Qual é o nome deste aqui, o da cabecinha vermelha?
– O nome dele é Pablo.
– Não! Eu quero saber é a raça dele!
– Ah, é um cardeal – respondeu o avô. – Também chamam de galinho-da-campina, mas eu prefiro cardeal.
O passarinho não parava de mudar a cabeça de posição, sempre observando avô e o neto, muito atento.
– É um cardeal muito sabido. Canta uma monstruosidade! Não, na verdade, não canta. Ele assobia. Queres ver?
O velho soprou um trechinho de música e o bichinho respondeu a ele.
O garoto sorriu. Era engraçado aquilo. Então, ele próprio tentou assobiar, mas saiu-lhe um sopro meio falhado. Mesmo assim, o cardeal respondeu a ele.
– Pablo sabe de tudo – disse o avô.
Os outros passarinhos começaram a cantar.
– Que maravilha! Eles não pagam imposto para cantar. Cantam e pronto.
Ficaram parados ali, por um bom tempo, escutando a cantoria.
Por fim, o avô disse:
– Vamos subir para o café. Garanto que a velha bruxa já está nos esperando com uma xícara fumegante de veneno.
A avó, gorducha e baixinha, acintosamente cravou as mãos na cintura.
– O que tu fizeste com o cabelo do guri, Leovegildo? O coitadinho ficou parecendo um enjeitado, um louquinho de hospício.
– Não te mete, Edméa! Isso é coisa de homem.
– Coisa de homem! Isso é coisa de doido! Onde já se viu raspar um coco desse jeito? Isso aqui não é quartel.
O avô pegou uma fatia de pão e, falando alto, saiu para o pátio.
– Vou é cuidar dos meus passarinhos que eu ganho mais.
A velha passou a mão pela cabeça do neto.
– Não te assusta com o teu avô. Ele é meio maluco, sim, mas tem um coração do tamanho de um bonde. Um homem que passa os dias cuidando de passarinhos não pode ser mau. Tu não achas?
O menino concordou com um gesto de cabeça. Não respondeu porque estava mastigando um baita naco de pão com manteiga.
– Esse velho passa o dia em função dos bichinhos – prosseguiu a vó. – Agora, vai gastar uma hora limpando as gaiolas e botando água e alpiste para eles. Depois vai espalhar as gaiolas pelo pátio. Tu vais ver. Mais tarde, ele fica trocando as gaiolas de lugar. Primeiro, bota os passarinhos no sol. Quando esquenta, leva eles para a sombra. O dia inteiro é essa dança.
O menino coçou o pescoço. Estava com uma comichão irritante atrás da gola do pijama.
– Onde já se viu? Zerar o cabelo do neto com uma máquina velha. Um cacheado tão lindo! Só mesmo um velho maluco! Cada vez ele está mais maniático. Por acaso ele te ensinou a fazer ginástica?
O menino sacudiu afirmativamente a cabeça, e pegou uma nova fatia de pão.
– É um exagero. Garanto que faz mal para a saúde dele. Está ficando gagá. É só para se mostrar para ti. Se tu morasses aqui na nossa cidade, se não viesses para cá só nas férias de julho, ele não se exibia tanto para ti. Como é que ele não tem vergonha? Só os passarinhos mesmo para aguentar esse velho rabugento.
*Lourenço Cazarré é escritor e jornalista.