ARTIGO – AS MORTES DE DELFIM NETTO E SÍLVIO SANTOS

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AS MORTES DE DELFIM NETTO E SÍLVIO SANTOS (SENOR ABRAVANEL)

Marcelo de Oliveira Passos*

O economista, político e diplomata Antônio Delfim Netto faleceu na semana passada. Senor Abravanel (Sílvio Santos), no fim de semana. O que a biografia de ambos tem em comum? O que representaram para o país?

Ambos nos deixaram com idades muito próximas: 95 anos para Delfim e 93 para Sílvio. São da mesma geração, portanto. As origens humildes de ambos também aproximam suas biografias das histórias de superação de Charles Dickens.

 Sílvio Santos, como sabemos, foi camelô, locutor dos barcos que faziam a travessia do Rio de Janeiro para Niterói, trabalhou em circo etc. Mas o que menos pessoas sabem: foi descendente direto de Don Isaac Ben Judah Abravanel, eminente filósofo e financista que deu jeito nas finanças da Espanha e, após ser expulso pela Inquisição, também consertou as finanças de Portugal. O próprio Sílvio Santos chegou a comentar sobre este antepassado eminente com orgulho em seu programa dominical.  Don Isaac Abravanel, um judeu sefardita (nome dos judeus que habitavam originariamente a Penísula Ibérica) foi também expulso de Portugal e emigrou para a Grécia, pátria do pai de Sílvio Santos. Benziou Netanyahu, outro pai de figura hebraica importante: o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu,  foi professor emérito da Universidade Cornell (EUA) e, curiosamente, também biógrafo de Don Isaac Abravanel. Escreveu Don Isaac Abravanel: Statesman and Philosopher (Don Isaac Abravanel: Estadista e Filósofo). Este autor caracterizou-o como sendo “a figura histórica mais notável entre os judeus no período final da Idade Média”. Nesse sentido, se Sílvio Santos não herdou de Don Isaac um talento tão marcante para as finanças, sua habilidade como negociador o impediu de sofrer um prejuízo ainda maior quando seu Banco Panamericano faliu. O banco era gerido totalmente por seu cunhado, pois Sílvio delegava poder em todos os seus negócios, à exceção do SBT. Seu cunhado era formado em Educação Física e cometeu todos os erros possíveis ao gerir o banco. Após a falência, passou a ser chamado de “Judas” pelo próprio Sílvio e por toda a família Abravanel.

Mas se a característica maior de Sílvio era a capacidade de se comunicar com simpatia e bom-humor. A característica marcante de Delfim Netto talvez não tenha sido a sua genuína e ímpar capacidade intelectual. Há muitos economistas brilhantes por aí. Mas Delfim era único em um aspecto que poucos economistas atuais possuem: a persuasiva capacidade retórica aliada a uma oratória tranquila. Convencia facilmente a quem não fosse muito bem formado e informado sobre economia. Jornalistas econômicos, então, ele tirava de letra.  Era preciso muita capacidade de observação, análise, experiência e conhecimento de economia para não se deixar influenciar por ele.

Contribuía para esta capacidade o fato de nunca ter sido muito ideológico em suas análises e opiniões. Outra semelhança que tinha com Sílvio Santos. Ambos, em suas falas e decisões, eram pragmáticos e focados nos próprios interesses e nos de quem representavam. De certo modo, embora o pensamento de Delfim Netto se aproximasse de um viés novo-keynesiano, nunca fez questão de deixar isso evidente. Era prudente nesse sentido. Tal prudência o ajudava a convencer interlocutores à direita e à esquerda.

Delfim foi de office boy à um dos professores mais importantes da história da USP, instituição que herdará sua biblioteca de mais de 70 mil volumes, sobre a qual ele não gostava muito de dar detalhes. Após sua carreira acadêmica, fez parte da equipe de planejamento do governo paulista de Carlos Alberto de Carvalho Pinto em 1959. De lá, saiu direto para compor o Conselho Consultivo de Planejamento (Consplan), o mais relevante órgão de assessoria econômica do governo do Marechal Castelo Branco em 1965. Voltou ao governo de São Paulo, como  secretário de Fazenda do governador Laudo Natel em 1966 e 1967. Retornou à Brasília como ministro da Fazenda de 1967 a 1974, foi  embaixador do Brasil na França entre 1974 e 1978, ministro da Agricultura em 1979 e do Planejamento de 1979 a 1985. Fez parte, portanto, de um grupo seleto de economistas capazes de criar prosperidade e recessão em doses altas, levando o Brasil do céu (o “milagre econômico” de 1967-1978) ao inferno (a crise sem precedentes de 1979-1981). Dois outros conhecidos economistas, além dele, viveram situações similares em seus países: o argentino Domingo Cavallo e o norte-americano Alan Greespan.

Após sair do Executivo e deixar de lado a vida acadêmica para manter sua influência no cenário nacional, Delfim ingressa no Poder Legislativo como deputado constituinte por São Paulo de 1987 a 1988 e federal por São Paulo entre 1988 e 2007.

Esta é outra similaridade entre estes dois notáveis: Sílvio Santos, em 1989, tenta lançar-se  como candidato à eleição presidencial. Só não o foi por uma contestação judicial efetivada por seus opositores que impugnou sua candidatura. De certo modo, a carreira de Sílvio, assim como a de Roberto Marinho, também decola no período militar. Após muitas negociações políticas, o comunicador e empresário (até então somente na TV e no varejo), transforma-se em um magnata da mídia. Obtém a concessão para a TVS, a qual anos depois viria a ser o Sistema Brasileiro de Televisão (SBT).

Voltando à dezembro de 1968, a voz de Delfim Netto, não tão marcante quanto à de Sílvio, foi  gravada em um áudio histórico: a gravação que revela seu apoio incondicional ao Ato Institucional nº 5. Delfim Netto e o AI-5 deram ao presidente da república poderes ditatoriais como: intervir nos estados e municípios, suspender os direitos políticos de cidadãos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.

Se Sílvio destacou-se pela alegria, prosperidade e honestidade em seus negócios, chegando a ser, como gostava de dizer, o maior contribuinte pessoa física do Imposto de Renda, Delfim não seguiu este caminho. Em junho de 2016, no âmbito da Operação Lava Jato, foi intimado pela Polícia Federal a prestar esclarecimentos sobre uma denúncia de seu sobrinho, o advogado Luiz Appolonio Neto, que afirmou que o economista tinha recebido 240 mil reais em dinheiro pagos  pela Odebrecht em 2014 no seu próprio escritório advocatício.  Dois anos depois, novamente é alvo de denúncia da Lava-Jato:  a Operação Bona Fortuna investigou denúncias de corrupção ativa envolvendo Delfim Netto, outros políticos e o consórcio Norte Energia, que construiu Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Pará.

Ainda assim, o chamado “czar da economia” e “arquiteto do milagre” conquistou seu objetivo de ser o mais influente economista brasileiro. E Sílvio Santos, por muitos anos, alcança o posto de segundo maior empresário de TV do país. Permanece assim até que a TV Record do pastor Edir Macedo passa, nas últimas décadas,  a ocupar a sombra da TV Globo.

Se Sílvio Sanatos virou sinônimo de riqueza, bom-humor e alegria nas tardes e noites de domingo,  Delfim Netto também tinha um senso de humor inteligente e irônico. Assisti a duas palestras suas e conversei brevemente com ele. Pareceu-me afável e gentil. Foi um grande frasista. Deixo aqui uma boutade delfiniana com a qual o Sílvio Santos empreendedor talvez tivesse concordado:

“Se o governo comprar um circo, o anão começa a crescer.”

*Professor e economista.