ARTIGO – A FUGA E A VOLTA

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A FUGA E A VOLTA 

Luís Fernando Braga*

“Quando Freud diz que a fuga é um instrumento mais seguro para se cair prisioneiro do que se deseja evitar”, ele nos ensina que não há para onde fugir. A fuga, sob a lente freudiana, revela-se menos como um escape e mais como a construção de uma nova prisão, onde as paredes são tecidas com os fios da ilusão. Buscamos evitar o sofrimento, mas, ironicamente, o adensamos, conferindo-lhe contornos mais sombrios e complexos.

A vida, rio de curso inexorável, não tolera desvios, pois cada tentativa de burlar o seu fluxo cobra um tributo à alma, um pedaço de nós mesmos deixado para trás. Essa busca incessante por refúgio ecoa o conceito budista de “dukkha”, o sofrimento inerente à existência. Assim como o Budha identificou o sofrimento como a primeira nobre verdade, a psicanálise reconhece a angústia como um afeto fundamental que nos impulsiona a buscar alívio.

No entanto, tanto Freud quanto Budha nos alertam para os perigos de evitar a realidade. O refúgio excessivo no reino da imaginação aprisiona o indivíduo em uma infância perpétua, onde a realidade se esvai em um nevoeiro de desejos não realizados. Essa ilusão de permanência, como destaca o budismo, é a raiz do nosso descontentamento. A fantasia, como um entorpecente, adormece a consciência, embotando a percepção da verdade. E o ato de recalcar, de enterrar as dores e os traumas, pode despertar em nós um anseio silencioso pelo fim, um retorno ao nada primordial. Essa busca por anulação se assemelha ao “desejo de finitude” que o budismo rejeita, pois igualmente nos amarra à existência. A angústia, essa companheira constante, nos impele a buscar subterfúgios, a construir abrigos seguros em meio ao caos.

O inconsciente, em sua sabedoria ancestral, nos oferece fantasias, máscaras que disfarçam o vazio, a falta primordial que nos constitui. No entanto, essa fuga é apenas um paliativo, um engodo que não apaga a verdade, mas a reprime, manifestando-se em sonhos enigmáticos, em sintomas que gritam o que a consciência silencia. Evitar a angústia é renunciar à oportunidade de nos confrontarmos com a nossa própria incompletude, de encararmos a nossa nudez existencial sem os adornos da ilusão. O budismo, por sua vez, nos convida a reconhecer a impermanência de todas as coisas, a aceitar a experiência da perda como parte inerente da vida.

Essa aceitação nos liberta da “crença de permanência da mente estreita e unidirecional”. Contudo, é na dolorosa imersão na realidade que encontramos a possibilidade de nos reconhecermos, de nos reconstruirmos a partir dos cacos da nossa história. O inconsciente, rio caudaloso que corre sob a superfície, nunca cessa de murmurar, de nos enviar mensagens cifradas através de sonhos e lapsos. E a realidade, qual farol em meio à tempestade, nos chama de volta ao presente, desfazendo as miragens da fuga e nos convidando a abraçar a nossa condição humana, com todas as suas imperfeições e contradições.

Freud nos ensina que a neurose não é uma fuga da totalidade da vida, mas sim um desvio de fragmentos específicos, de pedaços da realidade que se tornaram intoleráveis à nossa sensibilidade. A psicanálise nos convida a desvendar a natureza da realidade, compreendendo que ela não é um dado objetivo, mas sim uma construção subjetiva, moldada pelas nossas experiências, fantasias e desejos inconscientes. Nascemos em um estado de desamparo, dependendo do outro para suprir as nossas necessidades e dar sentido ao mundo. A realidade, portanto, é sempre uma interpretação, um tecido de significados que tecemos a partir das nossas vivências e das nossas relações. Ao reconhecermos a natureza ilusória da fuga, e ao abraçarmos a incompletude da nossa condição humana, abrimos a porta para a transformação e para a construção de uma vida mais autêntica e significativa.

Assim como o budismo propõe o caminho do meio, evitando os extremos da autocomplacência e da mortificação, a psicanálise nos convida a encontrar um equilíbrio entre a satisfação dos nossos desejos e a aceitação das limitações impostas pela realidade. Ambos os caminhos nos guiam em direção a uma vida mais consciente e compassiva, onde a dor e o prazer são reconhecidos como partes integrantes da jornada.

*Engenheiro e economista.