A MÁQUINA MORTÍFERA DE BESTIALIZAR BRASILEIROS – PARTE 5

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Delações gozosas

Luiz Lanzetta*

O Brasil se deparou, a partir de 2013, com uma espécie de campeonato nacional da infâmia, difamação, calúnia, fofocas e denúncias relevantes, a serem bem checadas. Foram histórias ótimas, sem provas. Prazerosas. Muitas provas sem histórias. Tramas a serem apuradas, números a serem cruzados. Verdades tediosas. Nasceu o advogado de porta de linguarudos inexperientes, mas desesperados. Criou-se o “mídia training” de delator em on e em off. O coach de vingativos sem escrúpulos. Os delatores mais queridos da imprensa. Delator influencer e celebridade.

O mercado paralelo das taxas judiciais “com ou sem delação”. Reputações, honras, currículos, famílias, marcas, negócios e vidas foram perdidas para sempre. Balas perdidas nas costas alheias são carinhos à distância.

A cereja do bolo ficou por conta da auto-delação que a equipe carnavalesca de torquemadas deixou gravada contra ela mesmo. O coro grego da tragicomédia dessa época. Ninguém ainda pediu desculpas pelo vexame. Nem alguma mídia que não achou que ali não havia provas ou fatos noticiáveis. Proteção se paga com proteção.

O lado shakespeareano das delações é que elas provam tudo contra o delator e muito pouco contra o delatado. E tudo isto e mais um pouco contra quem incentiva o ato infamante.

Não faltavam crimes na administração pública e na iniciativa privada. Constatou-se isto pelas devoluções de dinheiro e contas secretas. O que faltava era uma nova mise-en-scène, mais adequada aos shows tipo Big Brother da televisão Alguns desses personagens estavam no auge do prestígio político e profissional no início da campanha geral de 2010.

Antônio Palocci, coordenador geral, por exemplo, presidia uma reunião de umas 30 pessoas (testemunhas) na sede da produtora da campanha presidencial do PT em março daquele ano. Ainda era momento das sugestões de nomes para integrarem a área da comunicação da campanha eleitoral.

Cito o nome do Palocci, pois qualquer delação, na Federal ou na imprensa, se cobra com exposição do sujeito, lembrança perpétua e apresentação de testemunhos coletivos. Depois de ouvir vários brilhantes currículos profissionais, o coordenador-geral revelou que estava convidando para participar da jornada um histórico diretor de relações institucionais de uma imensa emissora de TV, adversária histórica do PT e avalista de toda qualquer delação gozosa, desde sempre. Silêncio profundo. Bestializada a plateia. E se fosse pegadinha…

O coordenador passou a ideia que era muito bem relacionado por lá. E deixou implícito que levaria sua intenção à prática. Assim, como deixava claro a relação positiva, a seu favor, com direções de revista de grande prestígio. Tipo unha e carne. Pouco antes, Palocci fizera um convite-convocação a um futuro governador de Estado do PT para um almoço, onde apresentaria quem ele achava o nome mais conveniente para assumir as funções que eu já desempenhava, à convite da própria candidata. O almoço foi no dia após a convenção que formalizou a candidatura oficial.

Fui levado para a refeição, onde já estavam alinhados Palocci, Wladimir Garreta e o marqueteiro João Santana. Estou citando os nomes dos dois últimos também pelo critério da delação combinada, com a PF e/ou com a imprensa. Garreta e Santana são internacionais do ato vil, pois levaram suas línguas ferinas para passear além das nossas fronteiras.

O consagrado marqueteiro pressentindo que, naquela refeição, o papel de picanha fatiada era exclusivamente meu, se retirou com leveza e educação. Garreta, ex-secretário da Prefeitura de São Paulo e multitarefas notório de Palocci, fazendo ar de filme Francis Ford Coppola, exigia que eu transferisse o meu contrato, de curta duração, para ele. Ele já tinha feito, em particular, este apelo usando metáforas de Mário Puzzo, seu autor predileto, para minha surpresa e temor. Mas, disse a ele na ocasião, o contrato já era de quem me contratara.

O caso aqui passa agora de Coppola para os irmãos Coen, Joel e Ethan, como no filme Queime Depois de Ler (Burn After Reading, 2008). Há uma cena em que o diretor da CIA, depois de ouvir que certas operações só tinham feitos baixas entre aliados e funcionários, pespegou ao subalterno: “Volte com uma história que faça sentido”. No meu caso, não vai ser possível.

Ao fugir do restaurante e da “promoção do dia”, já na rua, comentei com o futuro governador, que me havia apresentado à candidata, os sérios riscos que estávamos correndo, políticos e policiais. Ele me acalmou dizendo que, até em virtude de prisões sofridas em conjunto, havia amigos na direção da campanha “de mais de 40 anos”.

Pouco depois, quando circulava por Brasília que Palocci e Garreta Vil já atuavam sob a direção dos irmãos Coen, a candidata à presidência fez um apelo numa reunião da direção geral da campanha, olhando para o seu coordenador geral especialmente (havia muitas testemunhas presentes). “Não mexam com os meus gaúchos!” Éramos três notórios gaudérios na área cobiçada. Mas a ordem foi obedecida exatamente como a CIA trabalha na vida e nos filmes.

Os sicários do coordenador geral saíram em busca das cabeças de maragatos e chimangos, que acabaram dançando a chimarrita sem gaiteiro. Foi um processo de delação em off, a maior parte criativa, de fatos inexistentes, mas gozosas, interesseiras e interessantes para a mídia geral e adversários políticos. Arriscava-se perder a eleição, mas mantinha-se a correlação de forças internas. Depois do temporal que desabou sobre todos, nesses últimos anos, deve haver gente mais ajuizada por aí.

Cuidado com as línguas, meninos!

Lava jato no rabo alheio é bidê com água quente e sabonete perfumado.

A seguir:
A guerra que não houve entre Riobaldo e Blau Nunes, dois contadores de histórias.

*Jornalista