A MÁQUINA MORTÍFERA DE BESTIALIZAR BRASILEIROS – PARTE 3

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Luiz Ricardo Lanzetta é jornalista, reside em Brasília, é integrante da equipe Treze Horas.

Luiz Ricardo Lanzetta* – Dezembro de 2021

O corpo de jornalistas do Coojornal, em Porto Alegre, capital gaúcha.

Gaúchos massacrados                                                                      

Em 1974, no Rio Grande do Sul, houve duas experiências no jornalismo brasileiro que deveriam ser examinadas à luz do que estamos vivendo, tanto nas inquietações políticas e econômicas, quanto nas novíssimas tendências no mercado da comunicação. A Folha da Manhã, nascida dentro do Grupo Caldas Júnior, então o maior do Estado, era uma experiência de “novo jornalismo”, pouco tentado nos veículos da grande imprensa, naquele período, em todo o País.

Seu primeiro diretor foi José Antônio Severo, há pouco falecido, um jornalista, historiador, escritor e cineasta, que deixou uma cratera lunar que dificilmente será preenchida nesta área. Os veículos da extinta Caldas Júnior pertencem hoje ao bispo Edir Macedo. Correio do Povo, TV e rádio Guaíba são um arremedo do que foi o grupo jornalístico, uma força institucional gaúcha. Hoje, o grupo é um dos muitos aríetes bolsonaristas encravados nos corações sensíveis do lugar.

A Folhinha, como era chamada a Folha da Manhã, de curtíssima duração, gerou um imenso grupo de talentos no jornalismo, que seguiram frutificando em vários lugares e inspirando novas experiências. A primeira delas já em 74, quando um grupo de banidos pela declinante direção da Caldas Júnior, foi reforçar a recentemente criada Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, a Coojornal, inspirada no modelo do cooperativismo adotado por parte da produção agrícola do Estado e por um jornal italiano, Il Giornale, de Milão.

De início, foi editado o mensário Coojornal, de circulação nacional. Ele se juntou editorialmente à imprensa alternativa, que combatia a ditadura militar. Não havia definição partidária na redação do Coojornal, em virtude da grande frente política que se formou. A partir daí, até sua extinção, em 1983, a Cooperativa dos Jornalistas avançou aos saltos. Lançou também um tabloide nas bancas, O Rio Grande Semanal, um anuário Econômico, os jornais do Grêmio e do Internacional e mais dezenas de publicações customizadas para terceiros.

Havia compromissos para a compra de uma rotativa própria e de uma rádio. O faturamento era crescente. A empresa, que era capitalista e disputava o mercado de leitores e de serviços, lotava dois casarões, em Porto Alegre. Surgiram várias cooperativas congêneres pelo País, de Londrina (PR) ao Rio Grande do Norte, segundo o exemplo que vinha do Sul. Em pleno regime militar, publicando inconveniências aos milicos e a seus apoiadores, a Coojornal estava prestes a ser abatida em plena decolagem. Estava incomodando em duas frentes: era da oposição política não clandestina e um projeto empresarial viável dentro das regras capitalistas.

Gregório Bezerra foi dirigente do PCB e deputado constituinte.

Com o declínio da Caldas Jr., a organização dos jornalistas se preparava para assumir, quem sabe num futuro próximo, um lugar no pódio da comunicação dos gaúchos. A caçada veio forte, variada e mortífera. A ostensiva foi comandada pelo General Antônio Bandeira, um dos mais carniceiros agentes do golpe de 1964. Foi ele o torturador à luz do dia do ex-deputado Gregório Bezerra, no Recife. O general foi também diretor-geral da Polícia Federal.

O fato culminante foi a prisão de quatro jornalistas, Rafael Guimarães, Rosvita Saueressig, Elmar Bones e do então presidente da Coojornal, Osmar Trindade. O motivo foi a publicação de um documento secreto do Exército, onde era analisado o fracasso do Exército no cerco ao guerrilheiro e ex-capitão Carlos Lamarca no Vale do Ribeira (SP). Os quatro foram enquadrados na Lei de Segurança Nacional. (Bolsomito diz que participou desta operação, aos 15 anos de idade. O primeiro fracasso?).

No tocante ao submundo da economia, direto dos ministérios de Brasília, e apoiado discretamente pela concorrência local, todos os anunciantes e clientes, das cercas de 30 publicações, foram pressionados por cima, por baixo, pela frente e pelos lados a retirarem seus apoios.

Todas as empresas anunciantes foram visitadas pessoalmente por agentes da PF, que levavam o aviso para não mais comprar espaço publicitário numa organização comunista. A Cooperativa já tinha funcionários acionistas e colaboradores por todos os lados, no Brasil e no exterior. Na época, era um dos sonhos de trabalho de muitos jornalistas. Afinal, a empresa era deles mesmos. Quebrada economicamente, a Coojornal não resistiu e fechou em 1983. Sobraram dívidas impagáveis.

Quem se fortaleceu a partir deste massacre, assumindo uma posição praticamente monopolista, no Rio Grande do Sul, foi a empresa que citamos no artigo anterior, no caso de Santa Catarina. O Senado Federal passou a ser a casa de seus funcionários e ex-funcionários até hoje, substituindo lideranças de todas as castas políticas que orgulhavam outrora os seus correligionários gaúchos. Mais uma coincidência?

Desde sua extinção, há quase 40 anos, a Cooperativa teve muitos de seus fundadores, cooperados e velhos patrocinadores exercendo alguma forma de poder no Brasil. No entanto, a estrutura empresarial da comunicação no país permaneceu inabalável. O Rio Grande do Sul teve, recentemente, dois governadores petistas e o PT passou 16 anos tocando a prefeitura da capital. Comandou também cidades importantes em todas as regiões, principalmente onde o cooperativismo agrícola foi muito forte.

O governador Franco Montoro no Palácio dos Bandeirantes, sede do governo de São Paulo – Foto: Orlando Brito

Não foi constatado, neste período, nenhum incentivo ao empreendedorismo gaúcho nessa área. Nem se alguém tentou pedir algo. Quando surgiu em 1985, a Nova República de Tancredo, a Coojornal já estava morta há dois anos. O porta-voz da presidência, por exemplo, era Antônio Britto, depois governador do Estado, foi um dos fundadores da Coojornal. Em 1982, ainda na ditadura militar, o governador Franco Montoro, futuro fundador do PSDB, ajudava discretamente a Coojornal.

O período tucano no poder central, porém, foi de abrir o mercado para tudo, mas aceitando todas as restrições à entrada de birôs de mídia para a distribuição de publicidade no Brasil. Manteve, desta forma, pouquíssima concorrência no setor. Nos 12 anos do PT no poder central foram tantos ministros que tinham relação com o/a Coojornal que, como diria a canção, “yo tengo tantos hermanos, que no los puedo contar…”. A Coojornal publicava, por exemplo, o Jornal dos Bancários, de Olívio Dutra.

A marca do PT neste período foi a criação de uma estatal, impossibilitada de trabalhar por sua dupla origem. Um cabide de emprego chamado TV Educativa, no Maranhão, e a TV Nacional, com suas pendências desde a era Vargas. Para surgir algo novo daí era como “nadar de poncho e correr de guarda sol”. Podemos imaginar se os jornalistas organizados fossem tratados como “campeões nacionais”, como fizeram com um grande açougue, o power point do Eike Batista, os conglomerados de mídia e com o sindicato dos grandes empreiteiros?

Os jornalistas foram além da reclamação da linha editorial dos veículos de comunicação? O Conselho de Comunicação, criado no Senado Federal, teve alguma utilidade? Quantas gotas de “regulação” da mídia vamos tomar por dia? Aqui há razões e ressentimentos para maldizer a todos, em diversos tons. A hora, no entanto, é para mirar a frente sem nos descuidarmos da história, pois ela sempre nos puxa os pés quando a noite vem. Todas as tendências políticas estavam representadas nos que trabalhavam ou se associavam ao Coojornal.

Luis Fernando Verissimo, escritor gaúcho e colorado.

Entre os que criaram a Cooperativa, em Porto Alegre, José Antônio Vieira da Cunha, primeiro presidente, segue trabalhando com sua a Coletiva Comunicação; o primeiro editor, Elmar Bones, persiste com seu jornalismo impertinente e inconveniente no JÁ; Jorge Polidoro, da primeira diretoria, é o presidente do grupo Amanhã. O preso e processado pela LSN, Rafael Guimarães, mantém a sempre ativa editora Libretos. Luis Fernando Verissimo escreve para vários lugares. A grande migração dos quadros da Folhinha para a Cooperativa foi ocasionada pela demissão injustificada de um jovem repórter, Caco Barcellos, que continua na profissão.

Homenagem

Esta coluna é dedicada ao jornalista Osmar Trindade (1936-2009), fundador e presidente da Coojornal que, depois de preso e processado no Brasil, teve que viver no exílio em Moçambique. Morreu em Porto Alegre, de onde havia saído, sem nunca ter voltado por suas próprias forças. Viveu em solo gaúcho por apenas mais 24 horas. Nunca foi convidado para trabalhar com pessoas a quem o Coojornal alavancou política e eleitoralmente. Também não pediu.

*Jornalista