ARTIGO – UM GRANITO EM PELOTAS

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“Nessas horas não aparecem os pedripaulos.” Foto: Arquivo pessoal.

Um granito em Pelotas

Henrique Pires*

Trimmmmmm…
— Pronto! Quem está no aparelho?

+ Aqui é da Padaria São João.
+ Seu Francisco está?

— Ele acabou de entrar no quartibanho. Posso ajudar?

+ Amanhã vocês querem pão d’água ou pão de dedo?

— Os dois. De quartiquilo.

+ E leite?

— Mande uma garrafa. Tanto faz da Colati como da Magloar. Mande também três queques e pode anotar tudo no caderno.

Assim que terminou aquela telefonema, viu que a dama de companhia tinha encostado os postigos e estava abrindo o paravento pra ir embora.

Pediu:

— Amanhã, na hora que a senhora vier, olhe se tem bandeira vermelha naquele açougue da Tiradentes. Se tiver, encomende pra de tarde um granito do peito. O Carlinhos vai na vesperal do Cine Fragata ver um filme de Kung Fu e depois passa lá e pega. Quero fazer um putiero.

+ Tá bem. Só vou esperar abrir o Cintos Cruzeiro pra colocar na cinta uns dois ilhóses, passo na drogaria, busco o Fenergan Expectorante da vó e passo no açougue.

Dia seguinte, a dama de companhia chegou esbaforida, assustada. Teve que pegar um carro de praça e não conseguiu passar no açougue. Quase fora atropelada pelo carroção cheio de tábuas da madeireira do Seu Moreira. O barulho da sirene da Sandu assustou o percherão tordilho, que deu uma corcoveada e a muito custo o boleeiro sofrenou aquele baita cavalo. Por sorte um Fenemê tinha descarregado umas coisas na Wollens ou na Quatro e Quatrocentos e tava parado e foi ali que o cavalo estaqueou.

+ Bendito Fenemê. Benza Deus. Nessas horas não aparecem os pedripaulos. Que susto. Podem perguntar pro Padre Queriqueti, que passou ligeiro e quase enredou a sotaina na roda. Ele foi fazer uma encomendação na casa de um senhor que recém tinha mudado pra perto do Cine Esmeralda. Não é gente conhecida. Ele se aposentou e abriu uma cancha reta passando a Vila dos Agachados. Parece que vai pro Fragata no bate-bate.

Seu Francisco, de Paula como muitos, com a mesma calma com que examinava as pantufas que tinha acabado de comprar na Cooperativa de Lãs, pediu para ela ficar tranquila. Que cuidasse da vó.

Ele mesmo passaria no açougue. Ia dar um pulinho no Del Fiol e no Robles pra ver onde estava mais em conta a revelação do filme da máquina. Na volta, olhava no açougue da Tiradentes, mas se ali não tivesse carne nova, ele sabia onde tinha: naquele perto do Galeto Gambruzi. Ficou encantado com a variedade de carnes no dia que passou por lá para ir no baratilho do Bazar da Moda. Soube que ele é quem fornece alcatra pro Bife Sujo.

— Deixa o granito comigo!

Em tempo:
Quem fosse de longe, talvez precisasse de intérprete para entender a maneira peculiar com a qual se falava em Pelotas naqueles anos 60. Um vocabulário que incluía carpins, guaraná Guarinda; um mapa que tinha vila do sapo, cerquinha, praça dos macacos, praça dos enforcados e outras tantas expressões que vez por outra se ouve, mas que não servem pra orientar um Uber ou um Taxi. Aconteceu comigo esses dias quando, distraído, pedi para ir na Rua das Traíras. Perto do corredor das tropas.

*Henrique Pires é jornalista e historiador.