Papa Francisco, um construtor de pontes
Pablo Rodrigues*
A cena do homem vestido de branco a atravessar sozinho a praça de São Pedro, no Vaticano, em plena pandemia, tornou-se símbolo poderoso de uma realidade incontestável: a fé é capaz de trazer luz em meio à escuridão. Chorando ou não os seus mortos pela Covid, quem não se sentiu consolado por aquela solidão fundamental do Papa Francisco, em pé, a rezar pela humanidade? Ali, pôde-se ver, em imagem clara, catequética, o tamanho e a importância de um pontífice – de um construtor de pontes. Ali, diante de um mundo que parecia se esfacelar e se distanciar, Francisco foi visivelmente, ele mesmo, ponte entre o céu e a terra. Ponte do desespero para a esperança.
Haverá sempre quem queira – principalmente, por não saber olhar para a vida de outro modo – colocar o pontificado de Francisco sob as lentes meramente políticas, normalmente redutoras, do conservadorismo versus progressismo. Haverá sempre quem queira, mais por satisfação de desejo pessoal do que por amor à verdade, rotular o Papa Francisco conforme seus próprios interesses. Veja: o mesmo Francisco que pediu maior acolhimento à comunidade LBGTQIA+ (posição supostamente progressista) permaneceu firme, extremamente firme, ao reafirmar o aborto como um pecado gravíssimo (posição supostamente conservadora). Como conciliar? Progressista ou conservador, afinal? Nem um, nem outro. Papa, simplesmente. “A Igreja não satisfaz expectativas, celebra mistérios”, afirmou o cardeal Carlo Maria Martini, em carta, ao filósofo e escritor Umberto Eco. Carta que seria reunida, junto a muitas outras, no excelente livro Em que creem os que não creem (Ed. Record).
Sem dúvida, há política na Igreja Católica. Ninguém nega. O Papa é o chefe de Estado do Vaticano. As lentes políticas são válidas. Mas não são as únicas. E, ouso dizer, não são as principais. Fossem as principais, os católicos não teriam chegado até aqui. Para comprovar isso, basta recordar que os primeiros cristãos foram perseguidos. E deram testemunho. Preferiram a morte a negar a ressurreição de Cristo. Se a questão fosse apenas política, sempre haveria uma possibilidade de negociação, de arranjo, de se chegar a uma espécie de “centrão religioso”. Não foi isso, como se sabe, o que ocorreu.
Papa Francisco esteve, sim, ao lado dos mais vulneráveis e frágeis. Por causa do Evangelho. Em um de seus primeiros atos públicos, visitou a Ilha de Lampedusa (Itália), local em que centenas de imigrantes africanos morreram afogados, após um naufrágio, ao tentar chegar à Europa. Manifestou-se duramente inúmeras vezes contra, por exemplo, as guerras na Faixa de Gaza e na Ucrânia, lamentando a vida de tantos inocentes mortos. Apertou o cerco, sem qualquer condescendência, contra a pedofilia na Igreja. Coordenou reformas importantes na Cúria Romana.
A mim, particularmente, sempre encantou saber que o filme preferido do Papa Francisco era A Festa de Babette, de Gabriel Axel. No filme, não é a religião que leva sabor e alegria à vida de uma pequena comunidade de crentes dividida, mas a gastronomia. Em 2013, logo após ter ido ao Vaticano cobrir pelo Diário Popular (com os amigos Clayton Rocha e Sergio Cabral) o conclave que elegeu Francisco, escrevi:
“Ao se encontrarem sentados à mesa, no banquete oferecido por Babette, os fiéis experimentam uma espécie de êxtase – quase místico – proporcionado pela culinária francesa. À mesa – em torno ao pão, ao vinho e aos doces – reconciliam-se. E saem renovados. A preferência de Francisco por este filme aponta um possível eixo de seu pontificado: o da extrema valorização da cultura, do fazer humano como reflexo da vontade de Deus”.
Creio que tenha sido meu maior acerto.
Descanse em paz, Francisco.
*Jornalista e membro da Academia Pelotense de Letras