ARTIGO – MEMÓRIAS DE UM ENCRENQUEIRO – PARTE 4

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Um Natal na geladeira

Carlos Eduardo Behrensdorf*

Dia 24 de dezembro, 1962. Preparação para o primeiro Natal em Rafah Camp. Fui até a cerca do pelotão, chamei o “habib Hélio”, um palestino que falava português e contrabandeava. Comprei uma garrafa de Grant’s. Comecei os trabalhos por volta das 16 horas. As 18 e pico, um sargento entrou no alojamento e perguntou quem seria voluntário para acompanhá-lo até a 8ª CIA, para buscar pacotes chegados do Brasil. Adivinha quem se apresentou? Eu. Adivinha quem foi escolhido? Eu.

Como o sargento era também gaúcho, de Santa Maria, e fora rebaixado há pouco tempo – de 1º para 2º – ofereci-lhe um trago, que foi prontamente aceito. Na barraca onde estariam as cartas e encomendas, ele me deixou na fila com a lista do que se destinaria ao 3º Pelotão e se mandou. Disse que, se eu tivesse qualquer problema, era só chamá-lo. Já era noite quando levantaram a lona da porta para entregar as encomendas. Nem cinco minutos se passaram e a confusão era grande. Não era só eu que estava com o pote quase cheio.

Quando chegaria a minha vez, entrou na minha frente um cara que eu não conhecia. Só vi que era parrudo. Mesmo assim, chiei: “Ô soldado, cheguei primeiro!”. O cara nem me olhou e lascou: “Fica na tua!” Insisti: “Respeita a fila, mal-educado, que eu cheguei primeiro!”. Resposta: “Cala a boca, não enche…” Não resisti: “Ô grosso, sai do meu lugar e vai à PQP antes que eu me esqueça!” No embalo escocês, tentei dar um chute no grandão. Não cheguei nem perto. Fiquei no chão com a cara na areia.

Logo dois soldados já estavam em cima de mim. Resumo da ópera: o cara era um 1º tenente “caxias”, que não brincava em serviço. Resultado: entrei num jipe que me levou para a cadeia do Batalhão. Dentro da cela havia uns três ou quatro hóspedes. Todos muito jururus. Um deles eu conhecia: Leonel, gaúcho de Santa Maria, que aguardava seu repatriamento.

Motivo: uma revista Manchete, que chegara com atraso de pelo menos dois meses para os oficiais. Na capa, uma foto do enterro do Mineirinho, um precursor nos anos 50/60 dos donos de morros de hoje, tipo Fernandinho Beira-Mar. Detalhe: segurando uma das alças do caixão estava ele, o Leonel, fardado, com o uniforme oficial para a viagem à Palestina. Leonel aguardava um avião da FAB que iria levá-lo de volta ao Brasil, onde enfrentaria um tribunal militar. Fora isso, era um bom sujeito…

Dois dias depois, 26, um sargento abriu a porta e me disse: “Sai!” Saí. Primeira pessoa que enxerguei e ouvi: o conterrâneo Nei Carvalho Feijó, o Canelão. A bronca veio rápida: “Porra, Garça, que cagada! Todo mundo festejando e tu em cana. Quando te trouxeram pra cá fiquei sabendo por telefone. Procurei o major Cid e contei tudo. Ele sacudiu a cabeça e me disse que no Natal não poderia fazer nada. Ele anda por aqui no Batalhão. Não complica”.

Para minha surpresa, Canelão pegou uma bicicleta e se mandou. Até hoje não sei onde ele arranjou aquela bicicleta. Aliás, não me lembro de outro ciclista fardado por lá. A roda girou: me levaram para um banheiro, arrumei a cara, molhei a cabeça e fui para a ante-sala do comandante, coronel Darci Lázaro. Depois de algum tempo um capitão saiu da sala e falou: “Entra”. Entrei. Fiz o que o Regulamento Disciplinar do Exército mandava: me apresentei ao coronel. Ele olhou pra mim como se visse um marciano e falou: “O Scarone já falou comigo. Ainda hoje vais para Gaza. Ficarás na Military Police. Olha lá…” Baixou os olhos e ficou examinando seus papéis. O mesmo sargento, que me aguardava fora da sala, disse: “O cabo está te esperando. Vai ao teu pelotão, apanha tudo que é teu e volta. Vais para Gaza ainda hoje.” Entrei no jipe. Saímos.

O cabo era carioca. Olhou bem a minha cara e lascou: “Teu santo é forte, hein, gaúcho? Por menos do que isso tem muita gente viajando de avião da FAB para a cana no Brasil…” Não falei nada. No Pelotão, peguei meu equipamento e uniformes. Enfiei tudo no saco de viagem. Perguntei a um dos parceiros: “E o Lamarca falou alguma coisa?”. Resposta: “Cai fora que é melhor…” Caí.

Uma cidade e um bar

Cheguei em Gaza com dois outros brasileiros: Elam Daniel da Silva Nei, nascido e criado em Ipanema, e Geraldo de Queiróz Rojas, de Vacaria. As coisas mudaram. As patrulhas eram feitas de jipe, comandadas por sargentos nórdicos – suecos ou dinamarqueses – e soldados brasileiros ou indianos. Patrulhávamos a avenida principal, a Main Street, Downtown, e, é claro, o QG da UNEF. Fazíamos a segurança de autoridades que visitavam os pelotões e dos artistas que vinham do Brasil dar shows nos quartéis. Os jipes tinham rádio.

O nosso batalhão tinha seu próprio conjunto musical, o Brazilians Boys. O pelotense Luiz Carlos Zanetti era o baterista. Quando Altamiro Carrilho e Peri Ribeiro, acompanhados por um conjunto de percussionistas cariocas, passaram por alguns batalhões da Faixa de Gaza até um indiano tentou rebolar.

A MP tinha em sua sede o Bar Perroquet. Só policiais militares da UNEF o frequentavam. Um único funcionário cuidava do local, o palestino Said. Ele era ao mesmo tempo porteiro, barman, garçom, cobrador, gerente, contador, bombeiro, responsável pela arrumação e limpeza e por nos dar notícias políticas dos movimentos contra os judeus e vice-versa. Na minha primeira participação vi que a barra era pesada. Os canadenses eram invejáveis: estavam sempre com o copo cheio.

Presenciei alguns porres que poderiam ser vencedores do Oscar de Balcão. Só uma vez perguntei ao Said: “Me diz uma coisa. O que acontece quando um dos gringos fica de porre e começa a quebrar as coisas por aqui e jogar lá pra baixo?” Enquanto secava um copo, Said olhou pra mim, riu e respondeu: “É só chamar a polícia!” Nunca mais perguntei nada.

Segue…

*Jornalista