ARTIGO – MAIS PERFEITO QUE O PARAÍSO – LUIZ RICARDO LANZETTA – TEXTO 4

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Seu Marocas e a guerra fria

A esta altura, Delamar Fernandes Gonçalves, o Seu Marocas, já se preparava para construir a sua casinha, que serviria como moradia permanente, na rua Novo Hamburgo. Era para ele e seu pai que, enfermo, precisava de um certo isolamento. A partir de então, tornou-se um mestre de obras excelente, amigo dos moradores e veranistas e um contador de histórias cheias de imaginação.

Dois anos antes da venda dos terrenos, foram lançadas as pedras fundamentais da caixa d’água e da capelinha. Era 1950. Em meio às autoridades, discursou o professor Alvacyr Farias Collares, um dos mais notórios representantes do conservadorismo local. Os revisores do Diário Popular, que tinham ler os seus artigos, temiam morrer por asfixia devido à extensão dos períodos. Um pouquinho da fala solene: “Os filósofos, emotivos pela intuição genial que os caracteriza, enxergam na mais fútil das coisas diárias aquele sinal divino que encanta pela ordenação do cosmos, maravilha, pela personalização do homem obnubila todos os gênios e as mais poderosas inteligências.

Nós, os homens de pensamento mediano, também encontramos a razão de ser de uma filosofia, verdadeira ou falsa, em relação a todas as coisas e pessoas com quem vivemos. Há uma filosofia do cotidiano que encontramos, às vezes, inesperadamente, nos cérebros mais simples, nos corações mais humildes”.

E assim se foi. Estava anunciado que o Laranjal poderia contar, depois de pronta a obra, com água correndo pelo cano e um cantinho para rezas e confissões. À sombra de um recém plantado jerivá, Seu Marocas, que já vivia a sua guerra fria, secretamente, com os Estados Unidos e com os poderosos municipais, devia estar pensando seriamente em fazer uso do seu fatal pó atômico.

Vendidos os primeiros lotes – foram 22 só para funcionários do Banco do Brasil -, as famílias de bem foram tomando conta do local. E centenas de crianças e adolescentes colocaram em prática o que passou a ser, para elas, a ocupação do paraíso antes da maçã fatal. “Atrás de mim estava o leão, à minha frente estava o crocodilo; à esquerda um volumoso curso d’água; à direita, um precipício, infestado, conforme soube depois, de serpentes venenosas. Tonto, sem conseguir pensar, caí no chão. A qualquer momento, esperava sentir a pressão dos dentes do leão enfurecido ou do esmagar das mandíbulas do crocodilo. Mas, depois de alguns segundos, ouvi um barulho alto e estranho, sem sentir qualquer dor. Levantei devagar a cabeça e vi, para minha alegria infinita, que o leão, impelido pela força que pulou contra mim, tinha caído dentro da boca do crocodilo. A cabeça dele tinha entrado na garganta da outra fera e ele fazia esforços inúteis para se liberar”.

Eis um trechinho das histórias de Karl Friedrich Hieronymus, o Barão de Munchausen, que viveu na Alemanha, entre 1720 a 1797. Suas façanhas, relatadas e aumentadas por Rudolfo Erich Raspe, fazem sucesso em todo o mundo desde então. Foram tantas as versões mais exageradas ainda, que Cecília Meireles comentou: “novas mentiras – a ponto de poder-se julgar afinal, que, de todos, o mais modesto a mentir foi o Barão”.

O Seu Marocas, adicionando o seu pó mágico, ao estilo do pirlimpimpim da Sininho e do Peter Pan, era o nosso Barão do Laranjal e nem é preciso explicar o porquê. Houve naquele tempo o verão dos jacarés. Eram muitos e pequenos, mas se espalharam pelo balneário, provocando a imaginação e o medo na criançada. Para um auditório de pequenos veranistas, Seu Marocas contou com naturalidade como escapou de um deles, muito perigoso e com más intenções: “Ele veio contra mim de boca aberta. Eu estava com o meu guarda-chuva. Abri rapidamente e pus na boca do jacaré. Imobilizei o bicho”.

Alguns jacarezinhos foram mortos naquela temporada. Um ficou pendurado pelo rabo na porta da Taberna “Cavalo Branco”, propriedade de um tirolês, que falava com aquele sotaque típico. Ao ficar muito tempo sentado no banco duro de um barco, remando, ele lamentava: “Aí mi bu, aí mi bu, aí mi bu”. Ficou conhecido como seu Mibu, da Taberna.
O cadáver do jacaré exposto não deveria ter mais de um metro, mas para as crianças era um crocodilo africano.

Junto com a exploração da barra, onde o canal São Gonçalo junta-se à lagoa, uma das primeiras aventuras eram as excursões, com substanciais piqueniques, ao balneário vizinho, o Barro Duro. Era uma luta atravessar as estâncias dos Assumpção, caminhando pelo pesado areião da praia, onde os pés afundavam muito. O desafio era maior e melhor à noite. Todo dia 2 de fevereiro, havia a grande festa da Umbanda, a data de Iemanjá, onde os jovens descobriram que a cidade, além do Carnaval, tinha outras fortes tradições da cultura negra.

Não só o charque e os doces. Pelotas exportou samba, adicionado por instrumentos de sopro, uma influência talvez longínqua. Giba-Giba (Gilberto Amaro do Nascimento), nascido na cidade, foi para Porto Alegre inventar um carnaval mais animado por lá. Cantor, compositor, percussionista e ativista cultural, Giba Giba criou a Escola de Samba Praiana e se tornou um marco do Carnaval da capital.

Implantado em 1953, o balneário dos Prazeres foi comercializado rapidamente. Foi um desmembramento da estância do doutor Ferreirinha, José Otone Ferreira Xavier, casado com uma Assumpção, e de muito bom gosto para a decoração e artes. Entre as restaurações históricas feitas pelo lendário artista plástico e restaurador Adail Bento Costa, (1908-80), destaca-se em seu portfólio, pelo requinte, a da estância dos Prazeres.

Em estilo colonial, a sede guarda uma antiga imagem religiosa. Uma santa barroca de 1758, a Nossa Senhora dos Prazeres, que está lá desde Thomaz Osório. Ela é rodeada por cinco anjos, que simbolizam cinco prazeres espirituais: piedade, amor, resignação, paz e bênçãos. Os prazeres no balneário ao lado, não eram necessariamente esses. Nem nessa ordem. Adail Bento Costa restaurou 2.043 peças. Solteiro, sem filhos, deixou para Pelotas sua coleção de antiguidades, a ser exposta no que sonhava ser um museu.

Algumas ruas no interior do Laranjal, principalmente à noite, lembram a cidade norte-americana de Savannah, na Georgia, quando álamos, plátanos, oliveiras, aroeiras e salsos chorões, assim como as originais e centenárias figueiras, mais a vegetação vinda da área pantanosa, dão um ar lúgubre a certos recantos. Savannah, a exemplo de Pelotas, perdeu uma guerra civil, e tem muita música negra e muito misticismo. Deve ter consumido charque produzido pelos escravos pelotenses, que era exportado para Nova Orleans e Havana. Era a alimentação básica dos cativos. E os instrumentos de sopro no samba pelotense lembram os do sul dos Estados Unidos.

Dizem que o maestro negro Manoel Acosta y Olivera, parceiro das operetas de João Simões Lopes Neto e regente da orquestra do Clube Beethoven, era cubano. Ou argentino ou uruguaio. Morreu sem que ninguém soubesse ao certo de onde ele viera.

O Barro Duro tornou-se um lugar bem popular, principalmente aos fins de semana. Certamente, os antigos barrados na balsa preferiam aquele recanto bem mais informal. Quando passavam os ônibus lotados pelo Laranjal rumo ao Barro Duro, um filho da elite pelotense comentava com o queixo para cima:
“Lá vão os petebês!”.

O PTB era o PT da época.

SEGUE!

(“Aqui, tudo começa grande na mão de um rico e termina fatiado nas mãos de um monte de pelados”, grafite visto na estrada Pelotas-Laranjal).