ARTIGO – ENTRE O BULE MONSTRO E A PRAÇA DOS ENFORCADOS

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Kleiton, Kledir e Cazarré discutindo “Mistérios do Bule Monstro” no Rio de Janeiro.

ENTRE O BULE MONSTRO E A PRAÇA DOS ENFORCADOS

Lourenço Cazarré*

Em meados do 2015, os irmãos pelotenses Kleiton e Kledir lançaram um de seus mais destacados e bem-sucedidos trabalhos: “Com todas as letras”.

Capa do disco: “Com todas as letras”.

A edição comercial – que começou a ser vendida no final de maio daquele ano, após o show inicial, realizado no Theatro Guarany – trazia, além do CD, um DVD que registrava os bastidores da construção daquela peculiaríssima obra.

Houve, porém, ainda, fora do comércio, uma edição especial que trazia também um disco de vinil e um livro luxuoso, em grande formato (30X30cm). Nesse livro, que reúne depoimentos de todos os envolvidos no trabalho, as letras das músicas foram transcritas por renomados calígrafos de vários países.

Seguramente ainda mais inusitada que a apresentação dessa obra em múltiplos meios, foi sua concepção. Aliás, talvez se possa dizer que “Com todas as letras”, nesse aspecto, foi uma criação revolucionária, já que as letras das dez canções que a integram foram construídas especificamente para o disco por conhecidos escritores gaúchos, de várias gerações e diferentes estilos.

É sobre isso que vamos falar aqui.

UMA PAUSA: PAR OU ÍMPAR

Porém, antes de começar este artigo, é importante registrar que, na segunda década deste século, os irmãos Ramil apresentaram, também, um outro trabalho de grande valor: o belíssimo “Par ou ímpar”, lançado em 2012, décimo álbum de estúdio da carreira deles, dedicado ao público infantil. Em 2013, esse trabalho foi acrescido de um DVD em que todas as canções eram brilhantemente encenadas pelos integrantes do Grupo Tholl. Esse foi sem dúvida um dos melhores trabalhos musicais dedicados aos jovens brasileirinhos, em todos os tempos, se não o melhor de todos.

ANOS 1970

“Com todas as letras” começou a nascer no princípio da década de 1970 quando os dois músicos pelotense desembarcaram em Porto Alegre para cursar engenharia na “Urguis”.

Nesses anos iniciais na capital gaúcha, os irmãos participavam de uma banda, Os Almôndegas, que em sua curta trajetória chegou a lançar 4 discos.

Kleiton, Kledir e Adriana Calcanhotto cantando “Lixo e Purputina”.

Naquela ocasião, conheceram um jovem escritor nascido em Santiago, chamado Caio Fernando Abreu, que havia apresentado em 1970, aos 22 anos, seu primeiro romance: Limite branco. Os três conversaram então sobre a possibilidade de Caio escrever uma letra que viesse a ser musicada pela dupla. A ideia entrou em hibernação porquase vinte anos, até que, na primavera de 1995, um ano antes de falecer aos 47 anos, o escritor rabiscou um poema sob um cabeçalho singelo: de Caio F. para Kledir R. Com a morte do ficcionista, a ideia de criar uma melodia para o poema sem título foi deixada de lado por quase duas décadas, até o dia em que o letrista Kledir e o maestro Kleiton voltaram a se debruçar sobre o original de Caio – que fala de sexo, drogas e misticismo oriental – e construíram “Lixo e purpurina”:

“Panos indianos, haxixe marroquino/ Lixo e purpurina/ E aquela menina só pensava em Calcutá/ Sinos do Nepal, mescalina mexicana/ Papos e baganas/ Descolar um jeito de chegar a Katmandu…/ Tanta gente boa, tanta trip/ Tanto sexo/ Viajar o mundo sem sair de Porto Alegre”.

Concluída essa canção – retrato de uma época muito louca e de uma geração não menos alucinada -, os irmãos perguntaram-se em que contexto poderiam inserir a música gerada pelo poema de Caio.

Foi aí que surgiu a ideia do projeto que levaria ainda algum tempo para ser concretizado: reunir em uma coletânea apenas cantigas escritas em parceria com escritores gaúchos.

LIBERDADE TOTAL E CRIATIVIDADE

As letras desenhadas por calígrafos.

O passo seguinte dos músicos foi procurar alguém com conhecimento sobre a literatura sul-rio-grandense. A escolha recaiu sobre o professor Luís Augusto Fischer, que, de imediato, apresentou aos irmãos uma lista de autores que contemplava todas as gerações atuantes e todos os estilos vigentes na ficção do nosso estado.

Escolhidos nove autores pelos Ramil, começou o trabalho de construção da obra, em regime de mutirão, seguindo um padrão invariável.

Primeiro passo: os músicos reuniam-se com o escritor em sua casa ou ambiente de trabalho para uma conversa inicial. Assim, em Porto Alegre, no Rio de Janeiro e em Brasília, eles interrogaram seus futuros companheiros de viagem sobre suas preferências estéticas musicais e literárias.

Nesse contato pioneiro, os escritores eram informados de que teriam liberdade total para a escolha de temas, mas eram também advertidos de que seriam obrigados a perseguir algo inteiramente novo – criatividade acima de tudo!

– Não vale buscar o poema de amor esquecido no fundo do baú desde a adolescência – advertia Kledir.

Numa segunda etapa, os irmãos Ramil enviavam a seus sócios de empreitada uma música que haviam criado tendo como bases as preferências confessadas pelo autor. Era em cima desta melodia inicial que os escritores começavam a levantar suas letras, obedecendo à métrica, rima ou prosódia, missão duríssima para quem está acostumado a rabiscar livremente.

Todos os contatos eram feitos por meio de cartas eletrônicas, que levavam textos ao Rio, onde moram os Ramil, e que de lá retornavam ao lugar de origem dos letristas noviços já vestidos de novas melodias.

FORA DA ZONA DE CONFORTO

Ao cabo dessa trabalheira, os músicos pelotenses declararam-se agradavelmente surpreendidos pelo desempenho de seus convidados. Tanto pelas insólitas temáticas levantadas quanto por terem quase todos os escritores se afastado, nessa empreitada musical, de seus mundos ficcionais.

De acordo com Kleiton, o fato de todos os autores serem pessoas distantes do cenário musical proporcionou o surgimento de letras que fugiam totalmente aos temas batidos até a náusea pela MPB.

– Embora sendo um nadador apaixonado, eu jamais imaginei que um dia faria uma música sobre natação – ressalta ele. E acrescenta: – Menos ainda sobre escovas de dentes.

Como o exemplo mais radical do afastamento do escritor de sua zona de conforto temático, Kledir aponta o caso do também pelotense Alcy Cheuiche. Embora poeta, dramaturgo e cronista, ele é mais conhecido pela sua obra ficcional formada por densos romances históricos que têm como cenário o passado gaúcho. No entanto, surpreendendo a quem talvez esperasse um texto sobre cavaleiros empunhando lanças em guerras cruentas, ele inventou – em “Lado a Lado” – um personagem que abençoa a relação homoafetiva de sua filha:

“Se tu gostas dela, minha bela, o que é que eu posso te dizer?/ Me emociono ao ver vocês as duas/ O amor precisa acontecer… Se vocês se amam, minha filha/ Façam uma jangada, uma família/ Abandonem logo essa ilha/ E atravessem o azul do mar”.

Luis Fernando Veríssimo dá uma canja no disco

Algo semelhante se deu com a composição que Luís Fernando Veríssimo entregou a seus sócios musicais. Conhecido pela veia satírica e pelos textos enxutos e diretos, o saxofonista (que dá uma canja no disco) Veríssimo escreveu uma hermética e integrante composição:

 “Venha ver o que ninguém mais vê/ Submerso ali num oceano/ O outro lado do outro lado disso que se vê/ O avesso do avesso do Caetano… Veja a luz da luz e a contraluz/ Por um contra-prisma singular/ Há um mundo por detrás do mundo/ Tudo o que parece é muito mais”.

TEMAS INCOMUNS

Já Letícia Wierzchowski – autora do romance A Casa das Sete Mulheres, que deu origem a uma minissérie de tevê – resolveu falar do que sente ao observar seu filho praticando natação.

“E na água, na água, na água que dança em teu corpo eu sei que vou/ E na água, na água, na água, o teu brilho reflete e eu sei quem sou”.

No show de “Com todas as letras”, clipes eram projetados em telas colocadas ao fundo do palco. O mais bonito desses clipes, sem dúvida, foi feito para “Piscina”, que tem seu marcante refrão ressaltado por uma sinuosa melodia.

Outro tema inusitado foi sugerido por Daniel Galera, autor de Barba ensopada de sangue. A letra de “Vinte e oito escovas de dentes” nasceu a partir de um conto que narra a história de um sujeito que, irritado pelo fato de a namorada ter usado sua escova de dentes, discute com ela e, depois de “esvaziar uma garrafa de vodca”, sai à rua para espairecer. Ocorre, porém, que aquele é o dia mais escaldante de um senegalesco verão porto-alegrense. O cara então se arrasta pelas ruas incendiadas observando “a fumaça triste dos churrascos” e “as praças de quem não foi pra praia”. Ao retornar ao apartamento, não encontra mais a namorada, mas vê sobre a mesa uma sacolinha de farmácia. E, dentro dela, vinte e oito escovas de dentes.

AMOR ETERNO

Na contramão dessas insólitas composições, houve quem tratasse do tema preferido por noventa e nove entre cem compositores brasileiros. Mas a letra de Claúdia Tajes, criada a partir de um miniconto, aborda o assunto de modo extraordinariamente criativo e bem-humorado. “Felizes para sempre” é uma movimentada e divertida história de um amor eterno que dura só umas poucas horas.

“Às onze e três se casaram/ Onze e um quarto, deitaram/ Às onze e meia se amaram/ Ou pelo menos fingiram… À uma e quinze, cansaram/ Dormiram e não sonharam/ Depois das três, acordaram/ Nem eram quatro e saíram… Às quatro e pouco ainda riram/ Às quatro e tanto, calaram/ No carro, mal se tocaram/ No fim, nem se despediram”

Mas eis que, de repente, no enfarruscado oceano da música tupiniquim, atravancado por tantos barquinhos lotados com gajos e raparigas sofrendo de dor de cotovelo, irrompe o transatlântico “Cansado de ser feliz”, do performático poeta e cronista Carpinejar:

Kleiton, Kledir e Marta Medeiros.

“Veja bem/ O eu foi que eu fiz? Pra sofrer/ De ser tão feliz… Você é o que eu sempre quis/ Rezo a Deus e ainda peço bis/ Mas o que acontece/ Pelo que parece/ É que me aborrece ser feliz”.

Também esnobando as lamúrias amorosas, a cronista Martha Medeiros – que padece de felicidade crônica, segundo Kledir – escreveu “Pingos nos is”, que, numa tocada de roque, conta a história de alguém que, ainda que na marra, resolve ser feliz.

“Eu decreto e me liberto/ É hoje, agora, eu nem quero nem saber/ Porta aberta na hora certa/ Levar a vida sempre por um triz”.

RADICALISMO POÉTICO

Já a grande contribuição de Paulo Scott, romancista e poeta, foi introduzir no disco um rugido indistinto que parece vir da periferia da vida. Poema e melodia são soturnos, pesados, sufocantes. Embora a crua denúncia da guerra civil brasileira seja a marca dos nossos rappers, o discurso de “Rochas” não tem fumaças políticas ou reivindicatórias. É radicalmente poético.

 “Veio atrás de uma casa pra ficar na sua/ Mas a casa não é sua/ Ela é do mundo da lua/ Uma rocha que flutua no meio da rua/ Sem rumo, sem rumo, sem rumo… Dizem que somos belos e às vezes somos crianças/ Mas a verdade é que somos violência… O que nos acontece quando desarrumamos o olhar das mães que ficam sabendo que seus filhos nunca mais voltarão?… Nenhuma casa será a sua/ Aponta a rocha que flutua na paisagem e me diz: Vem morar no movimento”.

CANÇÃO DOS EXILADOS

Convidado a escrever uma letra, combinei com os Ramil, na conversa inicial que tivemos em Brasília, que o nosso tema – não poderia ser outro! – seria a Princesa do Sul, a Atenas Sul-rio-grandense, cidade da qual estávamos exilados desde os anos 1970.

Meio que sem saber por onde iniciar, esbocei três poeminhas que submeti ao crivo dos irmãos K. Kledir disse – para grande surpresa minha! – que aqueles versinhos de sete sílabas eram o que gente entendida em poesia costumava chamar de “redondilha maior”.

No final, acabou por prevalecer o texto em que eram alinhadas muitas recordações de uma infância alegre e feliz na bucólica Pelotas dos anos 1960. Polido e burilado, o texto recebeu um banho musical e transformou-se em “Mistérios do Bule Monstro – Brincando na Praça dos Enforcados”.

Vale a pena aqui, neste sítio pelotense, que trata preferencialmente de coisas da terrinha, reproduzirmos a letra toda:

Lá no fim do arco-íris/ Caixas de lápis de cor/ A professora ensinava? Foi Nabucodonosor

Lembro do ataque de asma/ A sirene da ambulância/ O vento abrindo as janelas/ Do nosso jardim de infância

O frio tentava uma festa/ Pela japona de couro/ Na casa da Vó Marieta/ Serviam feijão com louro

No inverno, sorvete quente/ No outono, folhas no chão/ Na primavera eu sonhava / Com as férias de verão

Na igrejinha da Luz / O padre rezava em latim/ Com batina de capuz/ Rodeado por querubins

Se alguém no jogo de víspora? Gritava: “É vinte e dois”/ Tinha Sinhá cochichava/ “Marrequinhas com arroz”

Fiz curso de molecagem / Na Vila dos Agachados/ Brinquei de papai-mamãe/ Na Esquina do Pecado

Bate bola no campinho/ Perna de pau, só no golo/ Enfrentei o precipício/ Do canalete da Argolo

Balneário dos Prazeres/ Segredos das Carmelitas/ Fadas dançando no mato/ Eu conto e ninguém acredita

Diz a lenda que há fantasmas/ No Solar da baronesa/ Na Praça dos Enforcados/ Na cerração da Princesa

Mistérios do Bule Monstro/ Bicicleta do Alfredinho/ Corcel, Judite, Miloca/ Eu era só um mandinho

Deus proteja os malucos/ E as “loucas” do mictório/ Eu vou terminar meus dias/ Num quarto do sanatório

 DEPOIMENTO

Para finalizar, transcrevo com mínimas alterações o breve depoimento que dei para o livro que acompanha o CD da edição especial de “Com todas as letras”:

Para mim, que comprei meu primeiro toca-discos aos 37 anos, por pedido dos filhos, o convite dos irmãos Ramil foi um espanto.

– Escrever uma letra de música? – reagi, assustado. – Mas logo eu?

– Te acalma! – ponderou Kledir. – É só uma letrinha.

Passada a perplexidade inicial, eu me lembrei de uns poemas (na verdade, prosa rimada) que andava rabiscando para um livro – Amor e guerra em Canudos, que seria lançado pela Editora Autêntica em 2019 – que contava com um cordelista entre seus principais personagens.

Mandei então os tais poemas para o Rio de Janeiro.

– Tens jeito pra redondilha maior – constatou o sempre gentil e generoso Kledir

 Veio-me então a ideia de transcrever em versos de sete sílabas trechos dos contos de um livro meu de narrativas curtas – “Enfeitiçados todos nós” – que têm, todas, Pelotas como cenário.

Foi o que fiz. Meti o machado naqueles causos e acabei arranjando um cacho de poeminhas que enviei aos irmãos musicistas.

Descartados alguns, limados outros, chegamos a um esqueleto poético que recebeu uma vestimenta (meio portenha) do multi-instrumentista e sonhador Kleiton. E foi por aí, mais ou menos, que a coisa andou.

MAIS UM SUCESSO NUMA CARREIRA EXITOSA

Pois bem, sete anos depois de lançado, “Com todas as letras” é seguramente um dos mais importantes marcos na exitosa carreira dos mais famosos músicos de Pelotas que, desde o começo dos anos 1980 – quando enfileiraram vários discos de grande sucesso – têm a admiração entusiasmada de brasileiros de todos os quadrantes. Foi muito bom ter participado dessa aventura.

  • Fotos: Acervo de Lourenço Cazarré.

*Jornalista e escritor.