CARTA PARA IGNACIO

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CARTA PARA IGNACIO

ECOS

PRÉ-PRÉ-NATAIS

Mônica BCM Russomano*

Escrevo esta “Carta para Ignacio” para o meu amado e único neto, na torcida de que ele leia, um dia, daqui a uns dez anos talvez, tão mal traçadas linhas, que provavelmente vão me fazer passar por gagá em praça pública, já que nelas constam algumas das minhas memórias proibidas, tiradas lá do fundo dos meus 74. E, faço isto,  bem consciente do risco dele jogar todas longe, como faz com os brinquedos de que se enche…

É que, pelo andar da carruagem, desconfio que a geração do meu xodó possa vir a ser a primeira do homo immortalis, nome que inventei agora, para o caso das pedantes divindades, que habitam o alto do Olimpo do Fórum Econômico Mundial, conseguirem mesmo o feito da perpetuidade pessoal, através de uploads, hologramas e que tais, mas é coisa que nada tem a ver com a alma e não a exclui de modo algum, meu xodó, como você vai ver a seguir, se me ler, pois dou testemunho líquido e certo da vida antes da vida existir, sim, e que nada tem a ver com os meros upgrades dos velhos álbum de fotos, dos tais “deuses”. E, se a vida antes da vida existe, a vida depois da vida, também, é óbvio. Pra encurtar: vamos nos encontrar de novo, querido, se é que já não nos encontramos antes. Palavra da Vavá e a Vavá não mente.

Resguardada a chance, é claro, de você me dispensar solenemente, não querer se dar o trabalho de me ler até o fim e preferir me jogar e a esta Carta no lixo, coisa sem problema algum, coração, porque a Vavá aplaude qualquer decisão sua e ainda vamos, os dois, dar boas gargalhadas disto tudo um dia, como lhe prometo solenemente e, com tanta certeza, que posso até jurar sobre a bíblia.

Porto Alegre, 13 de julho de 2024,

dia em que você completou 2 anos e 10 meses de idade

INTRODUÇÃO

Faz um tempão que penso em contar a mais gente isto que dedico agora ao Ignacio, mas antes preciso explicar o porquê de me ter detido a tempo por quase ¾ de século, isto é, me detido a tempo de evitar aquilo que podia – e pode? – fazer um estrago monumental na imagem internacional dos meus falecidos pais, mas que agora resolvi confiar ao 13 Horas, do querido Clayton Rocha, por considerar ser a melhor maneira de preservar esta história, ainda um tabu entre nós, e ter a chance do xodó me ler um dia.

Quanto segredo, não?! E, ora, bolas, qual o assunto tão bombástico, afinal de contas? Já falo, mas aviso aos navegantes de que é meio provocativo, pra dizer o mínimo, porque se trata de parapsicologia e a parapsicologia ainda não é tida como uma Ciência com “C” maiúsculo, e vou falar exatamente das paranormalidades da minha família paterna. Pelo menos. Da materna, não tenho tanta certeza que existam, mas, da primeira, sim, tenho!

Tudo começou com minha bisavó e sua tataravó, meu amado, Carmella Caprio Pizza, que virou aqui Carmella Caprio Fiore – e, depois, Fiori – para evitar o palavrão local óbvio da pronúncia de Pizza, mas a verdade é que a história pode ter origens bem mais remotas, as quais, no entanto, desconheço. Carmella imigrou com a família dela, de Caposele, província de Avellino, no sul da Itália, para o Uruguai, ainda no século XIX, sendo que meu bisavô, Federico Russomanno, também de lá, não teve dúvidas e se jogou pra estes lados de cá, atrás dela! O romance dos dois está muito bem contado no livro “Paixão” da prima Thaís Russomano, cujo título diz tudo e cuja leitura recomendo. Está online e é grátis. Os pombinhos casaram-se em seguida, mais exatamente no dia 06 de julho de 1889, em Montevidéu, acho que rumando logo para Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil, onde se fixaram.

Carmella era muito religiosa, católica devotíssima de San Genaro e… sim, paranormal. Não sei, porém, se este foi um dos seus encantos, que tanto atraíram Federico, aqui no Brasil, Frederico, ou se não. Pode muito bem ter sido.

Do primogênito deles, meu avô Victor Russomano, nascido em 12 de outubro de 1890, não sei de qualquer “estranheza” do tipo, mas do meu saudoso Pai, Mozart Victor Russomano, que nasceu Mozart Costa Russomanno e trocou de nome quando meu avô faleceu muito moço, e que devia o “Mozart” ao grande compositor – apesar do Pai não ter ouvido algum ou qualquer pendor musical, como eu – sei de muitas, muitíssimas.

A única irmã dele, Rosah Russomano, também era meio bruxa, mas, segundo a filha, a prima Nailê Russomano, mais em questões de saúde, de datas de nascimentos, de casamentos que não iam dar certo… embora ela não tenha tido esta última premonição em causa própria. E de mortes próximas.

A filha da Nailê, Thaís, também leva jeito. Em 1993, sonhou que a mãe levava, aflita, a mão à garganta, enquanto uma voz lhe dizia: – “Thaís, acorda! Acorda que tua mãe está morrendo!”. E estava. Foi diagnosticada, no check-up que a filha exigiu de imediato, com câncer de tireoide, do qual, graças a ela e ao sonho, se curou por completo.

Da descendência do único irmão da Nailê, meu primo Bruno Russomano de Mendonça Lima, médico, falecido nos Estados Unidos também em 1993, não sei dizer nada, porque os dois filhos dele são hoje norte-americanos e quase não tenho contato com eles ou com suas cinco netas. Mas perguntei à Nailê e ela não lembra de nada. Ou o Bruno não tinha “esquisitices” ou não contava a ninguém, nem a mim, que era como uma segunda irmã para ele. Nada de admirar, por sinal, porque esta também é a primeira vez em que vou revelar as minhas próprias “esquisitices” e um tanto quanto a contragosto.

Mas, da bisavó Carmella contam-se várias estranhezas que, admito, em parte podem ser folclore. Não testemunhei nenhuma, nem meu Pai: ela faleceu em 1922, ano em que ele nasceu. Estas, porém, passaram de boca em boca, através das gerações, e viraram meio lendárias. Ela era inteligentíssima, ainda que devesse ser quase analfabeta, como todas as mulheres imigrantes do século XIX, chegadas ao Brasil, mas era afiada em cálculos e criativa, tinha ideias ótimas e aos borbotões. E sabia de coisas que não tinha como saber. Comprovadamente. Por exemplo, numa vez, fincou pé em mandar abrir um poço num lugar da chácara do casal no Capão do Leão, então no município de Pelotas, munida duma forquilha, depois dos técnicos contratados terem jogado a toalha e desistido de achar água na propriedade. Ela, que se encasquetou do contrário – afinal a forquilha mostrava ter água ali, não mostrava?! – convenceu o marido, coisa que não parece ter sido particularmente difícil, a pagar para cavarem onde ela queria, com água ou sem água, e – surpresa! – a água brotou! O tal poço segue funcionando até hoje ou funcionou até a adolescência ou pré-adolescência do meu Pai, pelo menos, quando venderam a chácara.

E o Pai puxou a ela. Ele nunca usou forquilhas, é verdade, mas tinha premonições. No mínimo. E sempre começava a contar uma delas – só em casa e só para a minha Mãe e para nós, os filhos – com um: – ”Não me perguntem como sei, mas vai acontecer tal coisa”. E a tal coisa acontecia. Bumba, batata, no alvo! Sem erro. Uma vez, ele deixou de embarcar num avião para o Peru quase na última hora, por se sentir “estranho”, amolado, indisposto: desistiu e se salvou de um acidente de que. muito infelizmente, não sobrou ninguém. Bateram num pico… Eu tinha 12 anos, mas lembro como se fosse ontem. E, quem duvidar, que me fale em off, que digo o nome da companhia aérea e o número do voo. Sei até o nome do comandante. É bem verdade que ele conta a história meio diferente numa crônica, mas a razão, pra mim, é clara e cristalina: não dava pra bancar o bruxo com a fama profissional que ele tinha… Se ele mentiu na tal crônica? Não. Provavelmente teve o pressentimento e, por coincidência, houve algum contratempo com a reserva ou passagem dele. Mas, não mentiu, só omitiu o feeling “estranho” e que ia pegar mal, sem dúvida alguma.

Mas ele, ao contrário da bisa Carmella, era agnóstico. Não acreditava no Absoluto, nem que se pudesse comprovar a existência de Deus. Pois bem, depois da minha mãe falecer, três anos antes dele, ele ficou inválido, precisando de atendimento permanente de enfermagem. E quando digo permanente, era permanente mesmo: 24 horas por dia, 7 dias por semana. Todos nós, os quatro filhos, morávamos longe há muito tempo, com a cidade mais próxima a cerca de 300 quilômetros de Pelotas, onde ele insistiu em viver. Certa noite, quando a enfermeira cochilou, enquanto descansava numa poltrona do quarto dele, que era grande e tinha dois ambientes, ele, que dormia perto da janela para a rua Almirante Barroso, foi acordado, de um sono pesado, por um vulto luminoso branco, debruado de azul, que se debruçava e inclinava de leve sobre ele. Cumpre aqui esclarecer, por oportuno, que meu Pai não via cores, além de alguns tons de azul e do amarelo, mas aquele azul ele viu e viu bem. Num primeiro momento, achou ser a enfermeira – por causa da roupa branca – mas logo se deu conta de que não era ela, que ressonava na poltrona. Espantado, apesar de sentir que a presença era benfazeja, acordou completamente. Não me disse mais nada depois, a não ser que o vulto se desfez pouco a pouco, e que ele ficou acordado e pasmado por um bom tempo. Mas acho que ele omitiu uma parte… Acho que houve mais e ele não quis me contar… Quando foi isto? Creio que por volta de 2008, 2009, já que ele faleceu em 2010, e o fato se deu cerca de um ano antes da sua morte. E ele estava completamente lúcido, sempre esteve. Contei a história ao meu irmão no dia seguinte – coisa de que me arrependo amargamente – e somente contei por estas três razões a seguir: uma, que fiquei atônita, de queixo caído com a história, ainda mais, ele sendo agnóstico, e quis trocar ideias a respeito com alguém; duas, que meu irmão, ateu declarado, era paradoxalmente fissurado em coisas misteriosas e inexplicáveis – incluindo o jogo do copo; três, que o Pai não me pediu segredo… Mas não deu outra. Mal desliguei o celular, meu irmão ligou para ele… para debochar da visão do “vulto”, óbvio, ai de mim! O Pai ficou furioso e bem chateado comigo por ter contado. E com razão. Que ideia a do meu irmão… e a minha… Se arrependimento matasse, eu teria caído morta no ato e tapada de moscas, como se dizia antigamente.

Por outro lado, minha Mãe, sem qualquer parentesco sanguíneo com a bisa Carmella, também parecia ter um sexto sentido, pelo menos, quanto às “artes” dos filhos…

Ela teve uma EQM, uma Experiência de Quase Morte. Foi na noite ou madrugada de 6 para 7 de junho de 1997, três dias antes do meu 47º aniversário, que ela teve um acidente doméstico, sofreu um afundamento craniano e ficou em coma por cerca de duas semanas: subiu numa cadeira para alcançar algo numa prateleira alta de uma das rouparias, caiu e bateu o lado esquerdo, se não me engano, da testa, pancada que a deixou com sequelas cada vez piores ao longo dos próximos dez anos. Faleceu em 2007. Pois quando saiu da UTI e já estava no quarto do hospital, me perguntou de repente: – “Mônica, sabes o que estou fazendo aqui?” Fiquei paralisada porque eu não queria contar da gravidade do acidente dela e gaguejei na maior cautela: – “Caíste e passaste mal”. Ela me olhou irônica e também completamente lúcida, na minha opinião de filha muito próxima, e retrucou: – “Pois sim! Passei foi muito bem, muitíssimo bem, isto sim!” e me contou “ter visto tudo de cima durante o trajeto da ambulância e na chegada ao hospital”, descrevendo inclusive a localização da morgue com um “tinha mortos no caminho da maca(!)”, como as enfermeiras me confirmaram depois…

Enfim, parece que tenho a quem puxar pelos dois lados.

Nasci em Pelotas no dia 10 de junho de 1950, em família muito privilegiada, tanto a materna, dos primeiros povoadores do Rio Grande do Sul, vindos de Sorocaba, São Paulo, descendentes da índia guaianás Bartira, filha do cacique Tebyreçá, e do enigmático João Ramalho, que poderia ter descoberto o Brasil, segundo algumas fontes, mesclados com uma linhagem aristocrática portuguesa, comprovável até o século XII pelo menos – fato atestado por ninguém mais, ninguém menos, que o respeitado, querido e saudoso historiador e genealogista Dr. Paulo Xavier – quanto a paterna, dos imigrantes italianos de que já falei e que aqui fizeram algum dinheirinho, estudaram e se projetaram no cenário nacional, caso do meu avô Victor Russomano, médico obstetra, advogado, deputado estadual e federal, além de constituinte, e dos seus dois filhos, meu Pai e minha tia Rosah.

Mas cresci, portanto, sem computador, tablet ou celular. Telefone fixo, aliás, era fixo mesmo: a gente podia caminhar no máximo o comprimento do fio. Tipo secador de cabelo até hoje, provavelmente porque os inventores costumem ser meio negligentes com a aparência e dispensem a “futilidade”, que vinha, naquele tempo, com uma touca gigante meio de ET. Ah, e não havia Bina. Não se sabia quem estava ligando em caso de trote, às vezes, a altas horas da noite e até de madrugada. Ligação internacional? Levava literalmente horas e era via telefonista. Sem falar que caía. Pode parecer que isto foi há um tempão e que tanto tempo assim demora a passar. Não demora, meu xodó, meu querido, ai de nós(!), o tempo voa!

Acho porém que meus pais – se vivos – não aprovariam me ver falando nisso tudo… Gostavam de monografias, dissertações, teses, discursos e assuntos “sérios”, como convinha ao renome internacional dos dois. Mas sempre aprovaram as minhas tentativas infantis de desenhar e escrever, que desenvolvi desde cedo, é verdade. Fui alfabetizada aos 5 e desenho desde a mesma idade, mais ou menos, ou até antes. Eu já escrevia estorinhas desde os 6 ou 7 – meio plagiadas dos sobrinhos do Pato Donald e dos contos infantis do Sítio do Picapau Amarelo, do Monteiro Lobato, confesso – com meu primo-irmão do coração, Bruno, de quem já falei e que já se foi, há mais de 30 anos, meu Deus(!), mas… não guardei nenhuma delas. Ficaram todas, as minhas e as dele, esquecidas num armário embutido do corredor da casa da tia Rosah, na rua Dr. Cassiano, em Pelotas, e alguém jogou fora, que lástima! Eu ia gostar de nos reler…

Mas, indo ao que importa, às minhas lembranças pré-natais, que, sim, admito, foram esmaecendo com os anos, mas ainda persistem, embora desbotadas e amareladas, feito fotos antigas de um velho álbum, como cantava a inesquecível Vanusa, com aquele vozeirão todo dela, mas que persistem, persistem. É fato. Elas perderam, com o tempo, muito em cor e definição, mas que permanecem, permanecem.  E basta fuçar um pouco, como agora, que elas vêm à tona e sem parar.

Nunca tive uma EQM, mas tenho essas lembranças de antes de nascer. Lembro de um mundo estranhíssimo para a década de 50 e, de mim, num espaço todo branco, com paredes curvando no piso e no teto, como acho ser o interior de um OVNI, com luz indireta e uma parafernália tecnológica numa longa bancada com monitores, que se estendia da parede à minha esquerda até o fundo, à minha frente.  Vale lembrar, por oportuno, que a TV demorou horrores para chegar a Pelotas, apesar de ser a segunda cidade do RS nos 60, e que custei a ver um aparelho destes de perto, o que não se deu antes de 1962-63. Meus pais não eram fãs de bugigangas e até o radinho de pilhas de uma das empregadas era novidade pra mim. Novidade, por sinal, proibida:  noticiário ainda não me interessava, futebol, muito menos, e as novelas, que a copeira não perdia, eram vetadas pela minha Mãe de modo taxativo. Nem pensar! A copeira, no caso, morria de medo de ser descoberta ouvindo aquilo, comigo por perto, e ser despedida. Ou seja, eu não conhecia televisores até os meus 12 anos, a não ser pelas lembranças de antes de nascer.

Enfim, estive ali no “OVNI”, parada, por uns minutos, tipo aguardando, até que uma porta, à minha direita, deslizou silenciosa e lateralmente para o fundo, com curvas acompanhando as das paredes, e saiu por ela, ao meu encontro, uma mulher, que me pareceu então uma anciã, bem magra, de coque grisalho na nuca, mais pro severo, expressão impassível e vestida com uma espécie de túnica longa, meio afunilada embaixo, de um tecido muito branco, decididamente muito branco. Não sorria, nem era muito simpática, e me perguntou – porque lá nada é obrigatório, tudo é perguntado, tudo é decidido pelo interessado – se eu concordava em ver as TVs, na real, os monitores, como aprendi muito depois, e respondi que sim. Fomos até a longa linha de aparelhos, que eram a cores, coisa que importa esclarecer porque TV colorida que se prezasse, no Brasil, só em 1973, ainda que se fale de um documentário de 1963, de que nunca suspeitei até saber dele há pouco. E sou de 1950, não se esqueçam. Em 1973, eu já tinha 23 anos.

Assim é que me aproximei de um dos primeiros aparelhos, se não o primeiro à minha esquerda, e quem estava ali me perguntou se eu gostaria de uma demonstração. De novo, respondi que sim. Espantosa e inexplicavelmente, a imagem foi se aproximando e se aproximando, e aumentando e aumentando, como num GPS, agora tão banal, naqueles tempos analógicos, um troço pra lá de mágico, que não mostrava só lugares no espaço, na distância, mas também no tempo. Viajava no Tempo… Uma coisa ainda impossível em 2024 e deveras inexplicável na época! E lembro bem que, em 1968, quando eu já estava na Faculdade, em Porto Alegre, e me aventurei, num arroubo, a falar daquela experiência a dois engenheiros que viajavam de ônibus comigo, rumo à capital do estado, do bafafá que fizeram… Só faltaram me jogar na estrada pela janela. Riram-se de mim às gargalhadas… Ora, ora, se bem que o GPS oficialmente já estivesse em desenvolvimento nos Estados Unidos em 1968, só está disponível ao grande público, que eu saiba, há cerca de duas décadas, ou seja, desde o início dos anos 2000, e não desde então. De 68 pra cá, já lá se vão 55 anos, mais de meio século, e eu não fazia nem a mais remota ideia do que era um GPS na ocasião. Pois é… Fiquei um tomate e aprendi a fechar a matraca com a gozação, embora siga convencida de que a dupla errou espetacularmente, e deveria ter me achado admirável, fosse por eu lembrar de algo assim, mesmo se impossível à primeira vista, fosse por eu ter bolado algo fantasioso do tipo… coisa que não fiz! É tudo a mais pura expressão da verdade! Aceito passar por um detector de mentiras, quando quiserem.

Mas, voltando à “nave”, mostraram-me a minha Mãe e a vida dela aqui. Senti muita pena. Acho que devo ter visto o acidente final que a levou, não tenho certeza, mas vamos convir que a vida de ninguém neste mundo é um mar de rosas e que a dela não foi exceção à regra. Em suma, perguntaram-me se eu queria vir “para ajudar” e a tolinha aqui aceitou, que peito! Se pude ajudar minha Mãe? Gosto de pensar que sim, mas, por mais que eu tenha querido, acho que foi pouco, muito pouco, pouquíssimo. Como, porém, ele me chamava, no final, de Prozac, talvez eu tenha ajudado um tiquinho… Quem sabe?! Tomara!

Não foi só, porém. Teve mais. Algo muito particular e diferente daqui, onde todo mundo se mete na vida de todo mundo e quer convencer os outros e até obrigar as pessoas a mudarem de ideia ou a fazerem o que estas não querem, porque aquele era um lugar em que não se podia forçar a barra. Nada de querer influenciar alguém. Nem sequer minimamente. Isto, naquele lugar, teria sido um pecado indesculpável, um sacrilégio, uma deselegância fatal. Impor alguma coisa? Céus, não(!), que ideia sem pé, nem cabeça!!! Brigas e guerras, portanto, estavam absolutamente fora de questão. Algo como a Nova Ordem Mundial, não teria lá a mais mínima chance de surgir, prosperar ou se instalar. Sacou, xodó? Lá, de onde venho, todo o enfoque e todos os relacionamentos eram o oposto destes daqui, onde viemos parar nós os dois, mami e papi, e toda gente que conhecemos.

Só que eu tinha um par, uma alma gêmea, a quem devia participar a minha escolha de vir, ai, que aflição! E, ai, que novela! Como contar algo assim para a cara-metade, sem fazer esta querer vir junto? E, se ele quisesse vir junto, só por minha causa, seria por influência minha – e, influenciar, não se podia… Ou, se ele não quisesse vir junto, depois de saber que eu viria, dava na mesma:  ele é que corria o risco de me fazer desistir de vir… e, influenciar, não se podia… Um dilema, a maior sinuca! Lembro de mim, aflitíssima e sem achar uma saída… Mas, no fim, devo ter tido alguma espécie de ajuda. Dele próprio ou da senhora de túnica branca tipo camisolão… Acho que sim.

Se ele veio? Até hoje, não sei. Creio que não. Porque procurei por ele durante toda minha vida, me enganei várias vezes, mas sem sentir o tal do tcham-tcham-tcham. Embora, sim, meu primeiro namorado, que não deu certo por ser um senhor galinha, um mulherengo empedernido, sempre tivesse me trazido um desconforto inexplicável, um malaise, uma sensação meio que de vergonha alheia. Nunca falei nada disto a ele, claro. Não debati o assunto porque era polêmico. Ele era um cético dos pés à cabeça, como convinha a um psiquiatra freudiano. Seria bem embaraçoso pra mim tentar vender o meu dejà vu dele. Já era uma bronca eu tentar defender a convicção de que os recém-nascidos vêm ao mundo cada um com sua personalidade. Para ele, a gente chegava aqui pelada e tipo clones um do outro. O meio é que fazia toda a diferença e só a posteriori. O meio e mais nada. A hereditariedade – afora os traços físicos – era uma titica, uma ninharia que não servia muito pra nada, naquela distante e saudosa década de 60, em que namoramos e quase noivamos. Meu entendimento era – e é! – diametralmente oposto. Acredito piamente nos genes e… numa alma que preexiste ao nascimento, sendo que ele não acreditava em almas ou espíritos ou vida, além da física. Portanto, não faço a menor ideia se ele sentiu algo parecido com relação a mim. E nunca abri mão das minhas convicções ou me deixei convencer de que os fenômenos parapsicológicos, nos quais sou fissurada desde guria, são besteirol, coisa que, sim, ele achava. Eu, que sempre fui fissurada em ocultismos, apesar da educação católica apostólica romana, rígida e quase militarizada, que recebi, tentava fazer valer minha opinião a todo custo, mas sem sucesso. Ele ia adiantado na faculdade e eu era uma colegial. Na melhor das hipóteses, empatávamos.

Foi essa educação tradicionalíssima, no entanto, que me deu a chance dum primeiro encontro oficial com a parapsicologia e coisas heterodoxas do gênero. Sim, antes mesmo de eu começar a ler Allan Kardec – escolha bem controvertida lá na casa dos meus Pais, por eu ter uma Mãe quase carola, mas que cito porque o Espiritismo foi introduzido no Rio Grande do Sul justo por uma prima materna, Amélia Hartley Antunes Maciel, a Baronesa de Três Serros (e “Serros” era com S, mesmo, pode crer), aquela da Chácara da Baronesa, no bairro Areal, de Pelotas – e de comprar e ler compulsivamente matérias da revista “Planeta”, da Editora Três, fiz um curso de parapsicologia, patrocinado espantosamente pelas saudosas freirinhas do meu colégio idem, numa iniciativa 100% pra frente da época. Tenho memória de elefante – como o meu xodó herdou e tem, com absoluta certeza – e lembro perfeitamente do auditório imenso do São José, lotado só de gurias, onde descobri, mesmerizada, coisas nada ortodoxas, com uns 12 ou 13 anos. Durou uns três dias. Devo ter ainda o diploma nalgum canto.

Naquela época, era tabu falar sobre esses assuntos. Ao menos lá em casa. Não sei o que deu nas freiras… Minhas colegas regrediram à gestação e até a tempos anteriores. Falavam e escreviam como crianças pequenas num quadro-negro estratégico, colocado no palco. Choravam tanto que soluçavam. Eu, que descobri ali mesmo ser facilmente hipnotizável por ter ficado com as mãos presas, uma na outra, enquanto o parapsicólogo contava até 10 ou mais, sei lá se do menor ao maior ou vice-versa, só consegui soltá-las a um caro custo e no maior sufoco! É que eu não queria subir ao palco com elas assim, apesar do pedido do professor e médico parapsicólogo, após a contagem, porque as gurias que subiram, regrediram. E deram vexame, pelo que achei. Estávamos no antigo Ginásio, éramos adolescentes e preocupadas com o que os outros pensavam de nós. Por isto, não fui e hoje ainda não iria.

No mesmo auditório, por volta também de 62 ou 63, teve algum evento obrigatório em que deram um número para cada uma de nós, umas 1.000 alunas ou mais, por causa dum sorteio no final. Acho que era Dia da Criança. Pois eu sabia que seria sorteada e não uma única vez… e o meu número saiu mesmo por três vezes, coisa contra todas as probabilidades.

Aconteceu algo parecido na ULBRA, quando eu era professora e diretora do Centro de Tecnologia ou do Curso de Arquitetura e Urbanismo pela segunda vez, não lembro bem, mas foi nos anos 2000, quando meu nome foi sorteado e ganhei uma bicicleta de última geração, coisa que eu já sabia que ia acontecer desde que entrei lá… Acredite, se quiser, paixão! A bicicleta? Doei a uma colega, louca por ela, porque eu não tinha mais idade, nem vontade de pedalar.

Em criança, eu já tinha outras maluquices, sim, como a de saber t-u-d-o sobre a personalidade de uma pessoa só de olhar pros sapatos dela. Sobretudo se fosse um homem. Ora, pipocas(!), direis, sapatos são símbolos sexuais femininos freudianos… São. Adoro sapatos. Mas era muito diferente! Era saber da personalidade e das preferências (não sexuais) de alguém… uma coisa tão embaraçosa, tão constrangedora, por invasiva, que aprendi a desviar os olhos. Simplesmente deixei de olhar pra baixo. E passou. Desaprendi o truque, mas me lembro bem de ter esta estranha capacidade, tão inconfessável quanto as minhas lembranças de antes de nascer, por razões bastante semelhantes e que me pareciam ser uma exclusividade minha. Eu não achava que todo mundo passava por isso. Não era algo que eu achasse comum ou compartilhado.  Eu que era a estranha no ninho. Melhor calar o bico. E calei.

Ali por 1961, eu já tinha tido a sensação de que a gravidez de uma grande amiga da Mãe, não prosperaria, quando ela nos mostrou o enxoval do bebê a caminho. Pois não prosperou. Tive um desconforto súbito na casa dela, na 7 de Setembro, Foi quando comecei a me perguntar se eu me antecipava aos fatos ou se eu os provocava… E entrei em parafuso com esta última possibilidade. Hoje? Acredito que o tempo não existe e que, às vezes, me dá uma espécie de curto.

Algo parecido, por ter se dado na casa de outra pessoa e pelo desconforto, aconteceu em 1966 ou 1967, quando eu e uma amiga e colega fomos fazer uma visita de pêsames a uma professora leiga, que tinha acabado de perder a mãe. Uma quadra antes tudo começou a se dar em câmara lenta. A Beth não notou nada, mas tudo me parecia pesado, devagar e, quando fomos recebidas, eu sabia exatamente o que cada pessoa ia dizer e, a outra, responder… Foi tiro e queda, tudo se passou como eu antevi…

Afora isso, que eu lembre, já na década de 70 e em Porto Alegre, houve o caso da colcha da Mariângela, a minha primeira amiga de infância e vizinha de Pelotas, que também foi minha colega de pensionato das Irmãs Terezianas, na avenida João Pessoa, onde aliás isto ocorreu. Cursei arquitetura na UFRGS, a partir de março de 1968. No feriado de Nossa Senhora Aparecida, dia 12 de outubro de 1971, no sétimo semestre portanto, e no início da tarde, depois de almoçarmos fora, meu noivo e eu, ele me deu carona para buscar no pensionato, no meu quarto, de número 10 e no último andar, o projeto em que eu estava trabalhando na Faculdade. Íamos depois para a firma dele, que tinha várias mesas de desenho, para trabalhar em grupo e aguentar mais fácil as noites sucessivas em claro, comuns em tempos de canetas de nanquim que entupiam e outras delongas. Não existiam computadores pessoais e, muito menos, computação gráfica. Em dias chuvosos, por exemplo, o papel vegetal espichava e a graficação, o desenho, espichava junto, encolhendo quando o tempo melhorava…

Nossos quartos eram individuais e tinham cama, mesa de cabeceira, um armário embutido pequeno, um lavatório com prateleira de vidro acima, perto da janela, escrivaninha e, no meu caso, uma mesa de desenho. Era abarrotado e uma bagunça. Hoje sou organizadíssima, mas naquele tempo… O refeitório no térreo e um banheiro enorme, por pavimento, eram compartilhados. Não havia elevador, nem telefone, a não ser no térreo, onde também ficava um quadro de chaves dos quartos, com porta de vidro, que eram penduradas em ganchos quando saíamos: a Irmãs olhavam se a chave estava lá, em caso de telefonema ou visita, e nos chamavam pela campainha ou avisavam a pessoa que tínhamos saído. Um toque curto era 1 e um longo, 5. O meu, que era o 10, eram dois longos. Simples, básico, mas eficaz. É claro que a gente enganava as freiras, se não queríamos ser incomodadas, botando a chave lá embaixo e subindo de volta, que bons tempos aqueles, em que quase ninguém tinha morrido.

Isto explicado, no dia 12 de outubro de 71, peguei minha chave no quadro e subi. Reparei antes que todas as outras estavam penduradas, o que dava um certo medo de percorrer aqueles looongos corredores meio escuros. Quando cheguei ao terceiro pavimento, vi que tinha luz ligada no 11, ao lado do meu, pela bandeira de vidro móvel da porta alta, que abria para a circulação a fim de ventilar o ambiente, e pensei: – a Mariângela deve ter saído e esquecido de desligar alguma lâmpada… Chamei por ela várias vezes, para avisar ser eu e ela não se assustar, mas nada. Desisti, entrei no meu quarto e comecei a juntar pranchas soltas de desenho num canudo, de costas para a porta destrancada. Quando me virei, que susto! A Mariângela tinha entrado, sem fazer qualquer ruído. Estava mais branca do que já era e estranha, como se sonambulando, e segurava uma colcha antiga adamascada, dourada, com franjas, que lembro ter achado um tanto brega: estudante de Arquitetura era fogo e a gente queria tudo moderno. Ela me falou que tinha sido presente de noivado da vó Cota e consegui balbuciar alguma coisa como: – “Que bom! Teu enxoval agradece!”. Não ouvi a resposta, ela saiu e eu desci logo depois, meio correndo, porque meu noivo estava esperando no carro e devia estar se enervando, além de que não havia tempo a perder.

Um ou dois meses depois, nós, as vizinhas de quarto do andar, estávamos, aos costumes, preparando um cafezinho no 14, o do fundo e da Sula, depois do almoço, apesar disto ser rigorosamente proibido pelas freiras, dado o perigo de incêndio com a espiriteira, e começamos a contar sobre os nossos enxovais, assunto de praxe já que éramos todas noivas. Lá pelas tantas, a Mariângela falou de ter duas colchas, uma de piquet e uma de chenile, e eu pulei: – “Uééé, tens três! Esqueceste da adamascada da vó Cota???”.  A Mariângela ficou me olhando, pensativa, empalideceu mais ainda do que já era, e me perguntou: – “Mas como é que tu sabes?! Ela nunca saiu (da cidade) de Rio Grande e nem eu me lembrava dessa colcha!”. E jurou de pés juntos nunca ter trazido a dita cuja a Porto Alegre…  Um mistério danado que continuo sem decifrar. Mas que era ela, a Mariângela, no meu quarto, naquela tarde, sem tirar, nem pôr, era!

Saí do pensionato das irmãs terezianas ao casar, em 16 de julho de 1973, e minha única filha, sim, a sua mãe, querido, nasceu em 1º de outubro de 1975. No início de 1976, mudamo-nos de um apartamento de recém-casados – e recém diplomados… – no Centro de Porto Alegre, e que era do meu Pai, para um outro de três quartos, bem maior e em prédio novo, no bairro Santa Cecília, com muita infraestrutura próxima. Não sei se em 76 mesmo ou mais adiante, ocorreu um fato curioso e que também não posso explicar até hoje. Eu estava na manicure e pedicure de um salão, a menos de duas quadras de casa, quando, não sei bem o porquê, começamos a falar de coisas paranormais, jogando conversa fora. Eu falei que acreditava em seres espirituais bons, mas não em maus, quando uma outra cliente, que eu conhecia de vista e já ia saindo, parou, voltou e ficou no vão da porta, me olhando fixo por uns 3 ou 5 minutos. Achei que ela queria dar um pitaco qualquer sobre o assunto, mas, não, deu um sorrisinho vitorioso e saiu logo após eu sentir um soco no estômago e me dobrar em duas… Como gosto de pensar que sou protegida, acho que os espíritos maus demoraram para conseguir me atingir… mas…

Passada cerca de década e meia disto, com muitos sonhos nítidos, a cores e inesquecíveis, a ponto de eu ter de parar para pensar se aconteceram na vida real ou não, alguns me fazendo despertar com uma sensação de queda abrupta no final, e com premonições menores no meio, estivemos em Nova Iorque, minha filha e eu, a convite dos meus Pais, para passar o Natal de 1994. Resolvemos visitar as Torres Gêmeas. Pra quê??? Mal o elevador começou a subir mais e a sacudir forte com o vento, comecei a ter uma crise daquelas de pânico, que, não, nunca tenho! Eu só queria sair das Torres correndo o mais rápido possível, mas demoramos na loja de souvenirs lá encima, até porque minha filha não decidia qual bola de vidro, daquelas com neve dentro, ela queria. Finalmente, para meu profundo alívio, ela escolheu uma e descemos, mas… minha Mãe quis ir a uma cafeteria que conhecia, acho que num subsolo. Gelei! Não sei como descrever bem a sensação, mas era pavorosa. Mais tarde, depois que derrubaram as Torres, achei ter captado, sabe-se lá como, vibrações do atentado anterior, de 1993 – será??? – mas, a partir de 11 de setembro de 2001, mudei de ideia e achei ter tido uma senhora premonição, forte à beça e a maior que já tive, do que estava por diante!

Ainda na década de 90, não gravei a data, a agência bancária onde eu estava foi assaltada. E antes dos sujeitos entrarem aos gritos, apontando armas para a cabeça do caixa surpreendido e apavorado, eu sabia que algo ruim ia passar e já tinha até desafivelado meu relógio de pulso de ouro, que foi parar dentro de uma das papeleiras e depois que tudo acabou, resgatado. Coisas do gênero são comuns para mim, mas não têm hora para acontecer. Não tem como prever e não se dão quando quero.

Mais recentemente, em 10 de fevereiro de 2013, domingo de Carnaval, aconteceu outra bizarrice. Lembro perfeitamente da data, como não pode deixar de ser, porque eu tinha acabado de ver meu sobrinho falecer de um câncer de pulmão brutal, no Hospital Moinhos de Vento, de Porto Alegre. Estávamos, a mãe dele, a irmã, com o marido, e eu, esperando a liberação do corpo, quando meu celular tocou. Era a Epavi, empresa de segurança da minha loja-atelier de decoração temática infantil, inspirada no projeto que expus na Casa Cor RS 2010 e que fez sucesso, avisando ter havido uma invasão no prédio. Disseram que uma viatura deles, com guarda armado, já estava a caminho. Desculpei-me com todos como pude e, bastante consternada, expliquei que eu tinha uma emergência, mas que seria uma fugida rápida, de uns 45 minutos. A loja tinha uma antiga garagem no térreo, transformada em showroom para pessoas com necessidades especiais, mais a minha sala, com porta de vidro trancada, e um banheiro privativo, ambos atrás duma porta pantográfica com corrente e cadeados. Escolhemos entrar pelo pavimento superior, bem maior e com mais chances de alguém se esconder, onde também ficava a gravação das filmagens das câmaras de segurança, subindo por uma escada externa descoberta e descendo pela escada interna, coberta, só depois de descartar o piso de cima como possível esconderijo de um intruso ou, pior, de intrusos.

Eu e o guarda fizemos o trajeto, ele de revólver ou pistola em punho, revistamos meticulosamente o andar superior, olhamos o vídeo do dia, sem achar nada, mas, ao descermos, surpresa(!), vimos uma luz forte na minha sala, atravessando o vidro e a grade… uma coisa bem fantasmagórica na penumbra da ex-garagem. A única janela desse escritório era uma basculante daquelas antigas por onde não passaria nem uma criança, sem que fosse arrancada fora…  E a corrente, os cadeados e as três fechaduras da pantográfica e da porta de vidro da sala, seguiam trancados… sem ninguém à vista ou lá dentro… e sem o menor sinal de arrombamento em ponto algum… Se posso ter esquecido de desligar aquelas lâmpadas, antes de sair num feriadão prolongado como o de Carnaval? Posso. Sou maniática e reviso tudo quase compulsivamente, mas posso. Coisa que, no entanto, não explica o porquê do alarme ter tocado na Epavi, que me garantiu, sem sombra de dúvida, que isso só podia acontecer com uma presença no local. O sistema de segurança, com várias câmeras e gravador? Foi tudo completamente revisado e inspecionado pela empresa, que não encontrou nenhum defeito, e continuou depois a funcionar perfeitamente até eu fechar a loja-atelier em meados de 2015, desanimada com quatro arrombamentos, um sem-fim de alarmes falsos e aborrecimentos repetidos com funcionários. Insólito, pra dizer o mínimo, hein?! Aliás, como tudo que conto nesta “Carta para Ignacio”… Mas é tudo verdade, meu querido neto, pode crer, é a mais pura verdade, e não, não estou variando, não.

Anjinho, uma última dica, antes de encerrar estas mal traçadas linhas, que já vão compridas demais, mas que torço que sirvam de conforto, não só quando eu me for num pufff, feito naftalina, mas nas perdas inevitáveis da vida: esses fenômenos não são velharias superáveis pelos avanços da tecnologia futura, tipo cérebros chipados, hologramas e robôs fingindo emoções, não, eles vêm da alma, vêm obrigatoriamente de uma alma com vida própria, enquanto invenções, como essas outras de que falei, jamais passarão de upgrades neuralínkicos dos velhos álbuns de fotografias, coração.

Acho que a morte, meu anjo bom, é uma senhora enganação, é uma ilusão de ótica, uma trampa, e que é certo que vamos nos reencontrar, querido, não sei depois de quantas andanças, sabe-se lá por quantas e quais galáxias, mas que vamos nos encontrar de novo, lá isto vamos! Certas coisas são eternas. E não, não estou falando só de diamantes. Que já são falsificáveis, segundo eu soube recentemente na Netflix. Ou foi no YouTube? Não importa. Você e eu somos eternos, temos uma história eterna, querido, e às favas com os diamantes, vamos nos encontrar de novo e ponto. Final. Mas quando vai ser isto, Vavá? Não sei, coração, espero que daqui a muito, muito tempo pra você, mas que vamos nos ver de novo, vamos, tão certo quanto dois e dois são quatro. Disto, não tenho um pingo de dúvida. E a Vavá sabe ou não sabe de tudo?! Pois é… nos vemos ainda, é a Vavá que garante!

Com amor, assina, a eternamente sua, sim, eternamente(!) sua,

 Vavá