Uma inesperada batalha de poliglotas
Henrique Pires*
Antes de ser governador interino do Rio Grande do Sul e ministro da Justiça do Brasil, Maurício Cardoso atuou no governo estadual ao tempo em que Getúlio Vargas foi governador dos gaúchos. O ano era 1928 e o governador Getúlio havia determinado que fossem sabatinadas todas as professoras e professores que lecionavam nos cursos primários existentes no RS. Não eram tantos, de maneira que foram organizadas entrevistas individuais, agendadas com antecedência, por dia e hora e respeitando a ordem alfabética a partir do primeiro nome das mestras e mestres espalhados por todos os rincões do Estado.
No dia reservado à letra “F”, surgiu perante a banca examinadora um professor de vestes simples, modestas, que com raro brilhantismo respondeu primeiro temas de matemática. A fama de Francisco Valdomiro Lorenz o precedia e Maurício Cardoso – que falava doze idiomas – entusiasmado com a desenvoltura e segurança daquele recatado professor, após uma rápida conversa sobre língua portuguesa, propõe ao sabatinado falarem em outros idiomas.
Iniciou a nova conversa em francês, que Lorenz falou sem qualquer dificuldade, assim como manifestou-se, com firmeza, simplicidade e segurança, nas demais onze línguas nas quais foi sabatinado por Maurício Cardoso.
Era uma aula aberta, sediada na Biblioteca Pública de Porto Alegre, e as pessoas que lá estavam ficaram abismadas com o que estavam presenciando. Todos estavam encantados com aquele brilhante professor rural. Perguntaram “quantos idiomas o Sr. fala?”. Ele respondeu dominar 52 línguas, nas quais também lia e escrevia.
Perguntado se saberia falar e escrever em japonês, disse que sim e lhe fizeram uma proposta: havia na Diretoria de Higiene do Rio Grande do Sul, um médico, o Dr. Nemoto, e os examinadores se propuseram a mandar buscá-lo para que ambos conversassem. Lorenz concordou e pouco tempo depois chegou o profissional nipônico que, naquela época, atuava no Estado.
No idioma japonês, travam larga conversa e o Dr. Nimoto revelou – surpreso – aos presentes a fluência e o domínio do idioma por parte de seu interlocutor, que ao conversar com ele, identificou que o médico se expressava a maneira das pessoas de Yokohama, um pouco diferente, com expressões específicas e com diferenciada pronúncia daquela utilizada em Tókio. O japonês que ele falava era exatamente o daquela sua cidade de origem e publicamente admitiu estar diante de um raro fenômeno de domínio linguístico.
Nesse momento, Maurício Cardoso convidou a todos que se levantassem e disse que, na cadeira que ele estava ocupando, deveria estar sentado o Professor Francisco e imediatamente o convidou a sentar na principal posição da mesa examinadora. As palmas foram efusivas, as pessoas presentes estavam emocionadas e mais ficaram quando Francisco Lorenz falou: “por caridade, Doutor, está concluída minha prova. Permita que eu retorne para minha casa em São Feliciano”.
Admirado, Maurício perguntou: “mas o senhor não leciona aqui em Porto Alegre?” “Não”, respondeu o humilde professor Francisco. “Resido no Distrito de São Feliciano, interior do Município de Encruzilhada”. A notícia da rara e extraordinária situação ali vivenciada chegou rápido até o gabinete do Governador Getúlio Vargas, que chamou o professor ao Palácio e lhe ofereceu uma alta posição no Departamento de Relações Consulares do Estado, vinculado à Secretaria de Interior e Justiça do RS. Seria o tradutor oficial do Estado.
Lorenz agradeceu humildemente ao governador e disse que sua missão era estar com os alunos em sala de aula. Pediu permissão para voltar para casa e continuar dando curso, a sua vocação. Getúlio, encantado com aquele professor gaúcho, acabou aceitando e respeitando sua escolha.
Lorenz era imigrante, nasceu na República Tcheca em 1872 e chegou ao Brasil em 1891. Sempre lecionando, traduziu livros, publicou antologias – uma delas na Oficina Gráfica Edda, da qual se sabe muito pouco e que funcionava em 1928, em São Lourenço do Sul. Francisco Lorenz faleceu em Dom Feliciano, em 1957, falando e escrevendo, dominando mais de 100 idiomas. A localidade já havia trocado a homenagem ao Santo (São Feliciano) pela homenagem ao Bispo que tinha o mesmo nome (Dom Feliciano). Assunto que talvez eu aborde qualquer dia.
Maurício Cardoso faleceu ainda mais cedo, num acidente aéreo no ano de 1938, no auge de sua atuação política. Francisco Lorenz tem sido estudado, mas sua passagem maiúscula pelo cenário cultural brasileiro merece ser mais lembrada, principalmente nesses tempos em que imigrantes – mundo afora – são tão criticados e humilhados.
Felizmente, para nós, Lorenz escolheu viver e lecionar no Rio Grande do Sul.
*Henrique Pires é jornalista e historiador.