ARTIGO – MARCOS ROLIM*

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Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema”

ARTIGO – Marcos Rolim (*)

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Devemos reconhecer o mérito ou as iniciativas corretas das pessoas ainda que tenhamos diferenças importantes com elas sobre outros temas? Um político com o qual temos divergências, mas que se situa no campo democrático, deve ser elogiado quando imaginamos que acertou? Se estamos de fato empenhados em alcançar mudanças concretas, para as quais precisamos formar amplos campos de aliança e contar com iniciativas corretas e meritórias de muita gente, parece evidente que sim.
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A disputa política em nossa época se concentra, mais do que em todas as realidades anteriores, em torno de símbolos. São eles que afetam mais amplamente os valores e as visões de mundo que se prolongam nas tradições. Penso que, ao revelar sua orientação sexual em público, Eduardo Leite construiu um símbolo importante. Pode-se especular quanto se queira sobre seus motivos, mas esse é um caminho não produtivo, porque, independentemente dos motivos, o fato foi produzido e ele possui sentidos próprios que se projetam na opinião pública dando origem a uma nova sequência causal. O tema, então, parece ser: os efeitos da revelação do governador tendem a auxiliar a luta contra a homofobia no Brasil? Ou: é relevante e positivo na cena político-cultural brasileira, marcada pelo preconceito e pelo ódio, que um político em posição de poder se apresente publicamente como gay? 
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Penso que sim, que há uma boa chance de que o fato sensibilize um maior número de pessoas, incluindo muitas que não se identificam com a esquerda ou com as posições dos movimentos de defesa dos direitos LGBTQIA+. É possível que o fato constranja a homofobia em certos grupos e que chame a atenção para as dinâmicas de ódio homofóbico. Mais do que isso, caso Eduardo Leite seja candidato à Presidência, os efeitos positivos poderão se ampliar muito mais não apenas pela visibilidade do candidato, mas pela dinâmica objetiva que o impulsionará a apresentar e a defender uma plataforma específica a respeito dos direitos LGBTQIA+.
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Há uma certa tradição na esquerda mais diretamente tributária do marxismo que a autoriza a se imaginar o sal da terra. Por essa tradição, ou se abraça 100% do discurso tido como expressão da verdade, ou nada merece ser valorizado. E se uma liderança de outra posição político-ideológica assumir os 100% do tal discurso, ainda assim não faltará alguém para dizer: -“olha só, agora está dando uma de esquerdista….”
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A decisão do governador Eduardo Leite de revelar sua orientação sexual oferece um bom exemplo desse tipo de reação dogmática. Algumas lideranças da esquerda reconheceram, corretamente, a importância do ato e parabenizaram o governador. Outras, entretanto, entenderam que era o momento de criticá-lo.
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Para os críticos da esquerda, o fato da base bolsonarista estar atacando o governador da forma vil como costuma fazê-lo não é algo que mereça consideração. Alguns devem, inclusive, achar que é “bem feito” vez que Leite declarou voto em Bolsonaro no 2º turno em 2018. O que, assinale-se, não se confunde com ser “bolsonarista”. A realidade política das eleições para o governo no RS naquele ano apresentou Sartori como o candidato identificado com o bolsonarismo já desde o primeiro turno. A candidatura do MDB resultou na síntese “Sartonaro”, aliás, não por acaso. A aposta era a de surfar na onda de votos bolsonaristas no RS enquanto se acusava Leite de ser um candidato apoiado pela esquerda. Foi nesse quadro que Leite anunciou o “voto crítico em Bolsonaro”, possivelmente por ter calculado que outro posicionamento o levasse à derrota. Leite pode ser criticado por essa escolha? Por certo, especialmente por quem não se especializou também em fazer política calculando, mas faz sentido criticá-lo agora pelo voto em 2018, oferecido de forma constrangida na reta final da campanha, quando Leite se situa no campo da oposição a Bolsonaro? (A propósito, neste final de semana, o governador declarou em entrevista ao jornal O Globo, que a referida declaração foi um erro) Os críticos, por acaso, já cogitaram que a crítica ao voto em Bolsonaro atinge, também, a grande maioria do povo brasileiro? E que talvez esse tipo de cobrança dificulte ao invés de facilitar que os eleitores de Bolsonaro se afastem dele?
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Outros lembram as posições privatistas de Leite que possui compromissos liberais e identificam neles o motivo para não assinalar a importância do gesto do governador ou para relativizá-la na estrutura discursiva do “sim, mas…”  Por que o “mas” diante do ato que cabe valorar?  Por certo, todos os fenômenos possuem múltiplas conexões a serem dimensionadas. Há determinados fatos, entretanto, que demandam uma postura clara de apoio ou repúdio, independentemente de qualquer outra consideração. Se estamos diante da tortura, por exemplo, não há “mas” que se sustente; assim como não deve haver “mas” diante da corrupção, do racismo, da violência, da intolerância, do ódio, etc no sentido de que nossa recusa expressa posições de princípio, interdições morais e não juízos políticos circunscritos a circunstâncias. O mesmo vale, no polo oposto, diante de situações que demandam aprovação pelos valores pressupostos. Assim, por exemplo, a integridade moral, a determinação, a inteligência, a coragem, a compaixão, entre outras, são virtudes universalmente reconhecidas e que podem caracterizar a ação humana independentemente das posições políticas. Na verdade, as virtudes são muito mais importantes que as posições políticas, porque são elas que nos permitem selecionar fins e meios compatíveis.
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As ideologias não podem reconhecer isso, porque oferecem às mentes que sequestram a ideia de que todos os fatos, os gestos, os fenômenos sociais são manifestações de uma lógica anterior que é possível identificar em termos simplificados. Por essa dinâmica, é como se tais fatos, gestos e fenômenos não possuíssem existência real; sendo, na verdade, epifenômenos. Vale dizer: só existiriam como manifestações de “elementos maiores”, “estruturais”. Os guardiões das ideologias identificam dinâmicas causais em todos os fenômenos, sem que para isso ofereçam evidências. Isso ocorre, porque eles “já sabem” e porque a noção de realidade com que lidam é mágica. O resultado é que a “leitura” dos fatos se torna fastidiosa, porque remete sempre às mesmas “causas” e/ou “contradições”. A história é conhecida e envolve, também, “passar o pano” sobre as políticas de privatização e de austeridade fiscal quando implementadas por governos ditos “de esquerda”. Aliás, basta ostentar o rótulo de esquerda para chegar ao Poder e interditar a possibilidade de uma nova política de drogas e de aborto legal, vetar uma cartilha de direitos LGBTQIA+ para as escolas, construir um sistema prisional federal inspirado nas Super-Max norteamericanas, avançar na ideia de Operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLOs) e mandar para o Congresso e aprovar um projeto de “Lei antiterrorismo” que abre espaços para criminalizar os movimentos sociais. Cada uma dessas e de tantas outras posições já adotadas por governos da esquerda no Brasil – e que são típicas da extrema-direita – são, então, convenientemente esquecidas em meio à dialética e o cinismo.
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Como se sabe, muitos gays são politicamente conservadores, assim como muitos héteros, no que, aliás, estão em seu pleno direito. Embora o discurso homofóbico seja uma marca da extrema-direita e tenha se ampliado muito com o bolsonarismo, a homofobia não é seu patrimônio. Muitos esquerdistas reproduzem preconceitos homofóbicos, misóginos e mesmo racistas. Nos casos conhecidos, entretanto, há uma larga disposição da esquerda para “compreendê-los”. Piadas machistas e homofóbicas contadas ao longo da vida por uma liderança da esquerda, por exemplo, não merecem ser lembradas. A estrutura do discurso absolutório é do tipo: qual a importância de piadas preconceituosas diante do neoliberalismo? Novamente, haveria uma “realidade mais real” a qual devemos nos manter atentos. Essa é a senha para que os fatos sejam dissolvidos e para que as responsabilidades dos sujeitos desapareçam vez que, eles mesmos, não existiriam “realmente” como indivíduos, mas apenas como expressões de “interesses coletivos”.
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Quando examinamos posições políticas, discutimos no mérito as proposições oferecidas e elas podem e devem ser debatidas independentemente de variáveis como orientação sexual, gênero ou raça/etnia dos proponentes. Nesse momento, o fascismo escracha Eduardo Leite por conta de sua orientação sexual, o que vem sendo a tônica dos ataques que o bolsonarismo têm feito a ele já faz tempo. Não seria necessário denunciar esses ataques e se solidarizar com o govenador?  Ou é o momento de lembrar que Leite é um privilegiado, homem branco, rico, etc e que quem, de fato, sofre com a homofobia são as pessoas humildes, negras, excluídas desde sempre, humilhadas, agredidas? Talvez fosse mesmo o caso de lembrar isso se Leite estivesse se colocando em uma posição de vítima, se estivesse exigindo para si uma consideração especial, mas não se trata disso. Na entrevista com Bial, quando o apresentador empregou a palavra “coragem”, Leite disse que talvez sua atitude tivesse alguma coragem, mas que coragem mesmo era aquela que os profissionais da saúde estavam manifestando ao atuar na linha de frente do enfrentamento à Covid. Diante dessa coragem, assinalou, a dele era muito pequena.
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A reação dogmática que mencionei me parece ainda mais grave se tivermos presente aquele que é o maior desafio já colocado a todos nós: derrotar a vertente neofascista que prepara um golpe e um banho de sangue. Para impedir esse desfecho, precisamos de milhões de pessoas nas ruas e de uma ampla frente democrática pelo impeachment que vai da esquerda à direita liberal. É preciso ter presente isso para ampliar a resistência política ao bolsonarismo ao invés de debilitá-la. Para unir forças contra o inimigo, enquanto ainda há tempo.
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(*) Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016)