AMARCORD
“O que esses alemão de olho inchado estão fazendo na casa de vocês!?” perguntava indignado o Seu Marocas para as irmãs Graça e Suzana. Naquele momento, o vizinho protestava contra a presença dos dois filhos do então prefeito que estavam com o irmão delas. Preparavam-se para jogar um inocente futebol em algum terreno ainda desocupado. Os dois do “olho inchado” não sabiam e só saberão agora que tinham um perigoso inimigo. As meninas ficaram sabendo que o Seu Marocas tinha tecnologia e suprimentos suficientes para fabricar uma bomba atômica. Mesmo em casos de disputas municipais.
Além do confronto com o meio ambiente, a juventude tinha outras diversões. Duas promessas oficiais dos loteadores foram cumpridas: dois clubes sociais em dois balneários: Santo Antônio e Valverde. Lugares de festas, bailes, jogos de salão e quadras. Mas a iniciativa privada movimentou-se. Sobrinhos do Seu Marocas, os irmãos José Milton e Vilson Merenda, construíram o primeiro cinema ao ar livre – um drive-in de cadeiras.
Em seguida, lançaram “A Voz do Poste”, um sistema de autofalantes instalados ao longo da avenida principal. Um sólido sistema de comunicação que, junto do telefone do Bar do Adão, o único disponível, tirava o balneário da solidão. Havia dias em que a fila do telefone no Bar do Adão era maior que a da antiga balsa. Os filmes começaram a ser projetados, experimentalmente, no Laranjal Praia Clube e na Taberna da Lagoa.
Foi lá, logo de início, a exibição do clássico O Monstro da Lagoa Negra, de 1954. Era uma criatura meio humana e meio peixe, que emergia assustadoramente no meio de um lago de águas plácidas. Era sucesso no mundo, tornou-se cult e até hoje dá filhotes. Mas quem disse que as crianças entraram na lagoa naquele verão? O monstro lacustre aterrorizara a todos.
A programação incluiu até um filme promocional da Coca-cola. Fez sucesso pelo desconhecido. No sul, tomava-se Pepsi Cola exclusivamente. O refrigerante, como o butiá, só havia no sul. Depois, os Merendas construíram dois cinemas, sucessivamente, ao ar livre. Vilson também levantou um pronto socorro e um hospital. Atendia a todos, principalmente velhos. Encontrou entraves burocráticos na administração publica.
As obras, é claro, foram conduzidas pelo Seu Marocas. Os cinemas eram abastecidos por causa da representação comercial que José Milton tinha de uma distribuidora de filmes de Porto Alegre e de equipamentos de projeção. Ou seja, o drive-in mais novo garantia uma programação permanente. Muitas meninas de então não esquecem até hoje quando passou “A Dama Enjaulada”, com Olivia de Havilland. O guri das guloseimas, ou baleiro, era o filho de José Milton.
Hoje médico, também chamado José Milton, lembra com saudades da época pioneira. Até o seu aniversário de 10 anos foi filmado em 16mm, tecnologia para iniciados naquele tempo. Achava uma alegria distribuir pipocas aos frequentadores que levavam suas próprias cadeiras. Não podiam reclamar do conforto. Se quisessem, sofás e poltronas eram liberados.
A Voz do Poste existiu durante os primeiros tempos da ocupação do desconhecido.Transmita música e anúncios, sempre na voz marcante de Albio Buss, um garoto de origem alemã, tão alto quanto os jerivás da praia. Se Federico Fellini quisesse fazer um filme em Pelotas – e no Laranjal – não precisaria se preocupar em descobrir figuras exóticas e cômicas. Poderia fazer um Amarcord 2. Era só transferir Rimini, a sua cidade natal, litorânea, que encontraria uma boa fornecedora de personagens no sul do Brasil.
Vejam só a cena que ocorreu ainda nos anos 1950, quando o balneário estava se ajustando. Todas as senhoras eram “do lar” e rumavam para praia trajando “saídas de banho”. Não podiam desfilar só de maiô. Seria atentado ao próprio pudor. Mas a esposa de um médico conhecido, não tendo “saída de banho”, entrou no carro e partiu para o centro da cidade. Invadiu o maior magazine, numa rua comercial lotada de pessoas vestidas “normalmente”.
Vestia somente o maiô e parecia nem notar a grande diferença com todo mundo. Mas chegou a praia já com a protetora e pudica “saída de banho”. Foi o verão do maiô insensato. A meninada estranhava um menino que nunca tirava os sapatos para entrar n’água. Só havia siris quando a maré salgada trazia a fauna do mar. Ou seja, não havia ameaças no fundo barrento da lagoa. Como o costume não se alterava, com o passar do tempo, foi se criando uma desconfiança geral.
Espalhou-se entre a gurizada, com a língua afiada, que o menino não tinha pés humanos. Seriam pés de pato. Não era o equipamento para ajudar a natação. Era do bicho, mesmo. A lenda durou por muitos verões. Havia um senhor que só saía da lagoa muito lentamente. Andando de costas para a praia. Era uma tática. Queria ficar bem posicionado para olhar o corpo das jovens que estava entrando na água em sentido contrário. Ele não sobreviveu até a chegada do “fio dental”. Na certa, morreria outra vez. Havia muitos voyeurs no Laranjal.
A garotada gostava de admirar uma poeta local fumar seus cigarros na varanda. Era uma pose admirável. Profunda. Um casal de ingleses aparecia sempre no mesmo horário. Caminhava toda a extensão praia em ritmo acelerado. Depois, se retirava. Ele fumando cachimbo. Caminhar desse jeito só virou moda anos depois. O casal praticava “jogging”. O Laranjal tem hoje um grande trapiche para os pescadores. Antes, fazia-se trapiches individuais, para uma ou duas pessoas. Era para pescar no interior da Lagoa, numa profundidade razoável.
O menino Rui, por exemplo, tinha que levá-lo até um limite demarcado por balizas de madeira. Quando a maré subia, a água invadia os trapiches. Para não se afogar, tinha que nadar para o desespero de quem ficava na areia. Alguns faziam crowdfunding e adquiriam pequenos barcos para remar quase bem junto a praia. Não havia “banana boat” nesta mini Miami, como queriam os uruguaios. As bóias eram câmaras de pneus, remendadas inúmeras vezes. Os “peludos” causados pela estrada ruim forneciam bastante matéria prima para se boiar ao léu.
Em vários verões, acontecia o milagre dos peixes e dos camarões, de humilhar o Novo Testamento. Quando a água salgava, as famílias corriam para arrastar as redes. Dava para encher sacos de estopa de 50 quilos com camarão, para a loucura das crianças, que acompanhavam tudo. Umas vinte famílias passando as redes poderiam pescar uma tonelada de camarão numa boa noite. O peixe-rei aparecia em imensos cardumes. Com um caniço só pescava-se mais de 100 em algumas horas.
Dava para alimentar o balneário inteiro e todos os fiéis das carmelitas. Estas histórias, as crianças viveram. Não precisava o Seu Marocas contar. Os mais terríveis da meninada gostavam de infernizar o Mequinho nos salões do Laranjal Praia Clube. Criança, Henrique da Costa Mecking já era campeão brasileiro de xadrez e grande mestre internacional antes dos 20.
Provocado — “Tu não jogas nada!” — Mequinho levava a sério e desafiava a todos para enfrentá-lo. Ninguém aceitava. Valia pela maldade e pela cena. Os irmãos Fernando e Beatriz foram os primeiros a saber dos cemitérios indígenas. Observadores de tipos inesquecíveis, os dois, hoje médicos, tem em Seu Marocas o maior deles.
Foi o nosso Munchausen que construiu a casa da família dos dois. Concluída a obra, contou a eles que achara vários índios mortos acocorados em grandes vasos. Mas não mostrou o cemitério indígena. Disse também que já desenterrara um elefante quando estava construindo o cinema dos seus sobrinhos. José Milton diz que o seu Marocas, ao construir o hospital de seu tio, encontrou vários objetos indígenas. Isto ele viu e, de fato, índios habitaram a região até serem corridos dali. Já o cadáver do elefante virou fantasma. Os primeiros anos dos veraneios obrigaram as famílias a fazerem grandes mudanças. A ligação com a cidade, apesar da ponte, ainda era precária. A estrada continuava ruim. Por isto, em dezembro caminhões, caminhonetes, carros, o que fosse, levavam todas as tralhas, incluindo fogão e geladeira, as roupas em trouxas de lençóis, para só voltarem em março, no reinício das aulas.
Os homens, que trabalhavam, ficavam com o sacrifício do vai e vem do dia a dia. As mulheres eram “do lar”. Durante a semana, o Laranjal era território livre da criançada e das desesperadas mães. Era um grande espaço, para qualquer fantasia, protegido de tudo.
Eram em bandos, de bicicleta, explorando todas as possibilidades territoriais. Desapareciam. Quando se matava uma cobra, era um sucesso. Principalmente da ‘grife’ cruzeira. Naquele paraíso as cobras não falavam. Ainda bem.
Quem não tinha uma bicicleta, acabava pegando emprestada, como nunca esquece Lourdes Regina, ainda traumatizada 60 anos depois, com um amiguinho egoísta que lhe negava a sua. A inauguração do Praia Clube foi outra atração para os velozes e furiosos de duas rodas. Havia jogos de bolão, pingue-pongue e o estranho peteleco. Este, um joguinho bem local. Espancava-se uma rosquinha de madeira com o dedo médio até quebrar a unha. Depois o clube começou a promover gincanas entre equipes, que percorriam o balneário e até às estâncias dos Assumpção, em busca dos tesouros.
E havia bailes de todos os tipos, onde se destacava a escolha da Miss Brotinho. A primeira agraciada com o título despertou ciumeira. As línguas de Matilde diziam que ela teria tido alguma força política. Pura dor de cotovelo. “O broto era legal, sensacional, da pontinha da orelha”. Durante a adolescência da maioria, apareceu o Valverde Praia Clube, no balneário ao lado. Foi um avanço, pois os primeiros bigodinhos e sutiãs já estavam prontos para frequentar a boate da praia, uma modernidade. As noites ficaram menos inocentes. “Aquela está dançando de rosto colado. O pai vá ficar tiririca com ela”. “Tem dois de arreto lá fora”. “Quem é aquele pão que tá’ te secando?” “Será que ela cola o rosto e deixa apertar, se eu tirar pra dançar?” As conversas eram neste nível. Sussurradas. A música era de conjunto musical. Os Santos, um deles, animava com sucessos românticos italianos e rock. Até os mais tímidos, apesar do risco, iam à luta: “Será que ela vai me dar carão?”, temiam. As andanças pelo Laranjal à noite, nos primeiros anos, eram difíceis. A luz pública funcionava até às 22 horas, depois foi melhorando. As ruas permaneciam às escuras. Formavam-se grupos que, com ajuda de lanternas, deslocavam-se até os clubes ou a eventos sociais nas casas. Sozinho, nem pensar, pois o medo era grande.
Depois, evoluiu para “uma lanterna na mão e uma cachaça na cabeça”. Adaptação do slogan recém lançado do Cinema Novo.
Os verões tinham marcos. Um fato, uma pessoa, um evento. Teve o da febre dos bambolês, embalado pelos discos da Cely Campello. O do maiô de duas peças. Um furor. E haja “saídas de banho” para esconder a ousadia. Uma vez a maré subiu tanto que inundou até às casas mais longínquas, levando de brinde um conjunto de águapés, juncos e cobras d’água. Só não tinha mãe d’água por causa da água, que era doce. Para o Seu Marocas, era a prova inequívoca que corriam rios submersos no Laranjal. Embaixo dos que moravam em sua vizinhança, fluía o rio das Capivaras.
SEGUE!
(“Aqui, tudo começa grande na mão de um rico e termina fatiado nas mãos de um monte de pelados”, grafite visto na estrada Pelotas-Laranjal).