ARTIGO – MAIS PERFEITO QUE O PARAÍSO – LUIZ RICARDO LANZETTA – TEXTO 1

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Mais perfeito que o paraíso
(Acredite, é sobre o Laranjal)
Luiz Lanzetta

Em 1950, o Brasil era o País do Futuro e Pelotas estava para se transformar em Punta del Este. No mínimo. “Eu nunca vi lugar com vegetação tão promissora e local tão bonito. Só precisa da mão do homem para aperfeiçoá-lo”, exultava o uruguaio Juan Di Luca, recém contratado para viabilizar o balneário, às margens da lagoa dos Patos. “Um belo e pequeno paraíso”. Di Luca pensava grande: “A Lagoa, aqui neste ponto, será o nosso Mediterrâneo”.

Outro uruguaio, Washington Orteguey, não menos contido, garantia, numa palestra no Clube Comercial, que já atendera, em Montevidéu e Buenos Aires, pedidos de reservas de terrenos no Laranjal. O projeto dos orientais era ambicioso – falava-se em ir além do Paraíso. “Uma moderna ‘pelouse’ de tênis, dotada do mais moderno que existe, com arquibancadas; campo de golfe, de acordo com os ‘fields’ ingleses e norte-americanos, num terreno propício para a prática desse conhecido e aristocrático esporte; grande piscina, já planejada,onde serão realizadas provas e concursos entre os adquirentes de terrenos; cancha de basquete e vôlei”.

Destacava-se um cassino “imponente à moda Riviera” e um “parador” que, para quem não sabia o que era, Di Luca explicava: “Uma hospedaria dotada de todo o conforto, com ‘fumoir’, salas de palestras, redes, etc.” Mais detalhes estavam sob sigilo estratégico do empreendimento internacional. “A obra elevará Pelotas a uma invejável situação, uma espécie de Miami Beach em miniatura”, sonhava Ortoguey. Juan Di Luca fora chamado pelo engenheiro Adolfo Bender, o planejador de fato do novo balneário, a pedido de Antônio Assumpção, o proprietário das terras, desmembramento de uma sesmaria, doada no período colonial.

Anos depois, em carta bem humorada ao historiador, jornalista, advogado e militante histórico da “causa” Laranjal, José Vieira Etcheverry, o engenheiro Bender dá uma versão menos hollywoodiana dos ‘reclames’ fake dos castelhanos. “A bem da verdade, foi a pressão popular que levou os Assumpção a compartilharem com os pelotenses das belezas do Laranjal”.

Com permissão ou não, os pelotenses se aventuraram em excursões inesquecíveis ao Laranjal, através das estâncias dos Assumpção, desde o advento de uma precária balsa sobre o Arroio Pelotas, nos anos 1930. “Tudo foi financiado por mim, até o início das vendas em 1952”, lembrou Bender. O Di Luca trouxe corretores do Uruguai. Aí entrava a classe dele para vender o “sonho”. “No verão de 1954, sentíamos que Di Luca estava sob a pressão dos compradores de lotes, por obras, ruas encascalhadas, luz e água potável. Na verdade, não tínhamos capital para bancar e atender as justas reivindicações, prometidas na venda (…) O Di Luca foi vender umas casas no Cassino e nos abandonou”.

Até o paraíso florestal teve que ser plantado ou transplantado. Figueiras e jerivás, as árvores hoje mais representativas do Laranjal, viajavam apressadamente para serem instaladas em terrenos carecas. Na carta, Bender revela como verdadeira certa lenda que alimentava a suspeita dos mais jovens sobre a sanidade dos velhos do Laranjal.
As figueiras teriam sido plantadas com as raízes para cima. Bender confessa que plantou duas assim, em frente à velha Taberna da Lagoa, um dos primeiros empreendimentos na praia, porque achou as raízes daquelas árvores mais bonitas que as copas. “Coisa de agrônomo novato, dando de bom em botânica”.

A improvisação virou o método oficial para se plantar figueiras no balneário. Os velhos não estavam totalmente loucos. Foi na Taberna o primeiro baile, para festejar a inauguração e, depois, as projeções dos primeiros filmes para os veranistas.

A “armada” uruguaia era ainda maior, continua Bender: “Destaco o Freddy Wulff, judeu alemão, culto, alegre, emigrado com a família para o Uruguai, fugindo dos nazistas. Falava fluentemente alemão e inglês. Lia o Times. E a primeira coisa que perguntou foi se o nome que meu pai me deu foi por admiração a Hitler. Respondi, não. Foi por causa do poeta espanhol Gustavo Adolfo Becker”. “Ainda bem”, respondeu, “se não, seria fugir do fogo para cair nas brasas”.

Lembra Bender que “administrar o conflito entre as tradições pelotenses dos Assumpção (“barões e baronesas”) e os alienígenas castelhanos capitaneados pelo Di Luca foi a tarefa minha mais pesada que a drenagem da área e o transplante das figueiras. Passei na provação, tanto que após fui diretor da Praia do Pinhal, empreendimento que muito me envaidece”. Os uruguaios ambicionavam alturas. Os sócios locais apenas pediam que se evitasse “farofeiros”, expressão ainda não inventada, no local, aos fins de semana. Em seguida, a família Assumpção passou o empreendimento para outro Adolfo, o Fetter, político e empresário. O Laranjal, a partir daí, teve uma comercialização caseira, sem requintes alucinados.

Di Luca pode ter sido despachado para um outro lugar pela magia da “poeira atômica” do Seu Marocas, o primeiro morador não veranista do Laranjal, um personagem real mas literário, que vai conduzir este relato. Seu Marocas detinha superpoderes, auto-atribuídos, que deixavam bestas as primeiras crianças veranistas do novíssimo balneário. Tinha como principal adversários ”os americanos” e uma tradicional família de políticos pelotenses, que nunca souberam disso. Talvez o seu pó mágico tenha removido Di Luca para o futuro, no Brasil do século seguinte, onde teria aplicado sua técnica ao marketing eleitoral.

SEGUE!

(“Aqui, tudo começa grande na mão de um rico e termina fatiado nas mãos de um monte de pelados”, grafite visto na estrada Pelotas-Laranjal).